


O Rio de Janeiro continua lindo
** Por Risomar Fasanaro
Sim, mesmo depois de tanto tempo a verdade do poeta prevalece: “o Rio de Janeiro continua lindo”. Nada adiantou tirarem dele o papel oficial. A cidade maravilhosa continua a ser a capital do país. Não a oficial, a de blazer e saia à altura dos joelhos que é Brasília, mas a da moça bonita que caminha com sua minissaia e sandálias, com lindas pernas morenas à mostra.
Não há como a sisuda senhora Brasília competir com a leveza, a graça desta cidade, onde mesmo sob a chuva a poesia inunda o ar. Montanhas, mar, lagoa. Gente bonita caminhando pelas calçadas. E apesar das notícias constantes sobre a violência, nada abala o seu charme. Tanta beleza me tira a voz.
E é preciso lembrar que até as favelas, que todos nós conhecemos, que muitos consideram o lado negativo do Rio e que a TV, em sua análise simplista, responsabiliza pela violência, inspiraram algumas das mais belas de nossas canções como “Sei lá, Mangueira” de Paulinho da Viola, e Hermínio Bello de Carvalho e “Feitiço da Vila” de Noel Rosa entre muitas outras.
Estou com um grupo de pessoas que ama arte, ama poesia. Vim com minhas amigas Cira e Jane para a casa de Ruth que viajou e nos deixou passar o Réveillon nesse apartamento lindo, repleto de obras de arte.
No primeiro dia vamos com Samuel almoçar na feira de São Cristóvão. Pedimos um peixe em um restaurante nordestino e nos deparamos com uma comida em que o sal está completamente ausente. Permitem que a gente escolha outro prato, e decidimos por um típico nordestino. Constatamos que o cozinheiro não é mesmo talentoso, mas afinal, estar no Rio já é um presente de Deus. Como dizia Lampião, dois óio é lucro...
No segundo dia de nossa estada, conheço a poeta Isa Mara, que recentemente lançou o livro de poemas de Emily Dickinson que ela traduziu. Chovia quando ela chegou, e nos revezávamos na leitura de algumas crônicas do livro “As 100 melhores crônicas brasileiras”,(*) . Ela entra no apartamento como uma locomotiva do futuro, e vai declamando hai kais e hai kais que vai criando.
Depois senta, pede para também ler uma das crônicas de Clarice Lispector – estávamos hospedadas no Leme, na rua em que a deusa morou. Depois caminha pela sala e começa a declamar :
"Ora (direis) ouvir estrelas!Certo
Perdeste o senso!"
E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-Ias, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto
E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea...”
Ela esquece como o poema continua, e resolve ensaiar. Alta e magra sua figura me lembra mais um pássaro que uma pessoa que caminha. Aproxima-se da janela e vai repetindo de forma inaudível, os versos de Bilac. Pronto, já ensaiou. Declama então todo o poema com uma delicadeza, uma sensibilidade, digna de uma grande atriz.
Mas já se cansa da “brincadeira” e tira Cira para dançar. Já não são duas senhoras, são duas colegiais que fugiram da aula de matemática e por isso estão felizes.
Já é dia 31 e todas nos arrumamos para ver a queima de fogos em Copacabana; beleza e emoção que minhas palavras jamais irão traduzir. Estamos a 3 metros do mar, bem em frente às barcas que queimam os fogos. À meia-noite nos abraçamos, somos apenas uma onda daquele mar branco que toma toda a praia. Depois de algum tempo voltamos para casa.
Pela manhã é ela, Isa Mara quem nos acorda: levanta, levanta! Cira exige um hai kai para levantar e em cinco segundos ela já criou um:
Hai-kai balão
Hai- kacai balão
Aqui na minha mão
Lava as mãos, lava os pés
Que já é 2010
E ela continua criando haicais um atrás do outro. Cira sugere que eu também crie, mas estou totalmente “travada”, sem criatividade alguma. Não consigo criar um sequer. Isa Mara pede então que eu fale qualquer um que ela copidesca. Pode ser um dos meus, criados anteriormente e escolho:
a música da senzala
era a mesma da casa-grande
apenas tocava
mais feridas
Ela então diz: “vou copidescar, não está bom”. Cira interfere: “não vai copidescar nada, está lindo. Perfeito”. Ela insiste, faz algumas tentativas, mas não consegue melhorar o poema, então desiste e dá a mão à palmatória: “é..tá bonito mesmo”. Todas rimos.
As três se deliciam com as rabanadas que fiz com a assessoria da Jane. Querem saber o segredo de serem tão saborosas, explico que é preciso que o pão seja italiano.
À noite vamos à Lapa com Samuel, e realizo meu segundo sonho nesta viagem. Estou pisando o chão por onde andaram os maiores sambistas do país, e fico viajando, imaginando em qual daquelas casas Noel, Ataulfo, Ismael Silva, Araci de Almeida, Cartola teriam entrado, cantado, conversado com os amigos. Entramos no Beco da Garrafa e ali ficamos algum tempo tomando chope.
Percorremos várias ruas na madrugada, e em cada casa ouvimos um tipo de música diferente: samba carioca, samba paulista, rock, MPB, regaee...E, surpresa: nem um bêbado, nem um drogado. Os muros e os arcos da Lapa com algumas pichações e lindos grafites testemunham tudo.
Em geral só bebo guaraná e, eventualmente, vinho. Mas ali, de repente me deu vontade de tomar uma caipirinha. Sugiro, e Cira me acompanha. O tamanho do copo nos assusta. Acho que se tomássemos tudo entraríamos em coma alcoólica. Tomamos apenas um pouco e já estávamos saindo, quando avisto uma figura que me atrai. Impossível sair dali sem falar com ela. Não tem mais de 1,50, e ausente de todo aquele burburinho, toma um caldo de feijão de pé, no meio da rua, alheia a todo ao redor.
É Maria de Lourdes, que me diz ser rainha da passarela da escola de samba Estácio de Sá. Pergunto por que veste uma camiseta com a figura do Che Guevara, e ela me responde: “porque gosto dele”. E mais: conta que vem à Lapa toda semana; é sua diversão. Vejo naquela mulher uma das imagens do Rio.
No dia seguinte vamos a pé até Ipanema. Preciso conversar com o poeta. Lá chegando, sento-me ao lado dele e lhe explico porque em todos aqueles anos em que esteve na Rua Conselheiro Lafayette não vim conhecê-lo pessoalmente. Cira filma tudo. Conto a ele que recriei seu “Poema das 7 Faces”. Ele me olha em silêncio e não me responde nada, não entende o que aquela “doida” está a lhe dizer. Não faz mal, me despeço, com um beijo em sua cabeça, e prometo voltar. Quem sabe, “qualquer dia, qualquer hora, a gente se encontra...seja onde for, pra falar ...”
* Santos, Joaquim Ferreira dos- As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, Editora Objetiva,Rio de Janeiro, RJ-2001
** Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
** Por Risomar Fasanaro
Sim, mesmo depois de tanto tempo a verdade do poeta prevalece: “o Rio de Janeiro continua lindo”. Nada adiantou tirarem dele o papel oficial. A cidade maravilhosa continua a ser a capital do país. Não a oficial, a de blazer e saia à altura dos joelhos que é Brasília, mas a da moça bonita que caminha com sua minissaia e sandálias, com lindas pernas morenas à mostra.
Não há como a sisuda senhora Brasília competir com a leveza, a graça desta cidade, onde mesmo sob a chuva a poesia inunda o ar. Montanhas, mar, lagoa. Gente bonita caminhando pelas calçadas. E apesar das notícias constantes sobre a violência, nada abala o seu charme. Tanta beleza me tira a voz.
E é preciso lembrar que até as favelas, que todos nós conhecemos, que muitos consideram o lado negativo do Rio e que a TV, em sua análise simplista, responsabiliza pela violência, inspiraram algumas das mais belas de nossas canções como “Sei lá, Mangueira” de Paulinho da Viola, e Hermínio Bello de Carvalho e “Feitiço da Vila” de Noel Rosa entre muitas outras.
Estou com um grupo de pessoas que ama arte, ama poesia. Vim com minhas amigas Cira e Jane para a casa de Ruth que viajou e nos deixou passar o Réveillon nesse apartamento lindo, repleto de obras de arte.
No primeiro dia vamos com Samuel almoçar na feira de São Cristóvão. Pedimos um peixe em um restaurante nordestino e nos deparamos com uma comida em que o sal está completamente ausente. Permitem que a gente escolha outro prato, e decidimos por um típico nordestino. Constatamos que o cozinheiro não é mesmo talentoso, mas afinal, estar no Rio já é um presente de Deus. Como dizia Lampião, dois óio é lucro...
No segundo dia de nossa estada, conheço a poeta Isa Mara, que recentemente lançou o livro de poemas de Emily Dickinson que ela traduziu. Chovia quando ela chegou, e nos revezávamos na leitura de algumas crônicas do livro “As 100 melhores crônicas brasileiras”,(*) . Ela entra no apartamento como uma locomotiva do futuro, e vai declamando hai kais e hai kais que vai criando.
Depois senta, pede para também ler uma das crônicas de Clarice Lispector – estávamos hospedadas no Leme, na rua em que a deusa morou. Depois caminha pela sala e começa a declamar :
"Ora (direis) ouvir estrelas!Certo
Perdeste o senso!"
E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-Ias, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto
E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea...”
Ela esquece como o poema continua, e resolve ensaiar. Alta e magra sua figura me lembra mais um pássaro que uma pessoa que caminha. Aproxima-se da janela e vai repetindo de forma inaudível, os versos de Bilac. Pronto, já ensaiou. Declama então todo o poema com uma delicadeza, uma sensibilidade, digna de uma grande atriz.
Mas já se cansa da “brincadeira” e tira Cira para dançar. Já não são duas senhoras, são duas colegiais que fugiram da aula de matemática e por isso estão felizes.
Já é dia 31 e todas nos arrumamos para ver a queima de fogos em Copacabana; beleza e emoção que minhas palavras jamais irão traduzir. Estamos a 3 metros do mar, bem em frente às barcas que queimam os fogos. À meia-noite nos abraçamos, somos apenas uma onda daquele mar branco que toma toda a praia. Depois de algum tempo voltamos para casa.
Pela manhã é ela, Isa Mara quem nos acorda: levanta, levanta! Cira exige um hai kai para levantar e em cinco segundos ela já criou um:
Hai-kai balão
Hai- kacai balão
Aqui na minha mão
Lava as mãos, lava os pés
Que já é 2010
E ela continua criando haicais um atrás do outro. Cira sugere que eu também crie, mas estou totalmente “travada”, sem criatividade alguma. Não consigo criar um sequer. Isa Mara pede então que eu fale qualquer um que ela copidesca. Pode ser um dos meus, criados anteriormente e escolho:
a música da senzala
era a mesma da casa-grande
apenas tocava
mais feridas
Ela então diz: “vou copidescar, não está bom”. Cira interfere: “não vai copidescar nada, está lindo. Perfeito”. Ela insiste, faz algumas tentativas, mas não consegue melhorar o poema, então desiste e dá a mão à palmatória: “é..tá bonito mesmo”. Todas rimos.
As três se deliciam com as rabanadas que fiz com a assessoria da Jane. Querem saber o segredo de serem tão saborosas, explico que é preciso que o pão seja italiano.
À noite vamos à Lapa com Samuel, e realizo meu segundo sonho nesta viagem. Estou pisando o chão por onde andaram os maiores sambistas do país, e fico viajando, imaginando em qual daquelas casas Noel, Ataulfo, Ismael Silva, Araci de Almeida, Cartola teriam entrado, cantado, conversado com os amigos. Entramos no Beco da Garrafa e ali ficamos algum tempo tomando chope.
Percorremos várias ruas na madrugada, e em cada casa ouvimos um tipo de música diferente: samba carioca, samba paulista, rock, MPB, regaee...E, surpresa: nem um bêbado, nem um drogado. Os muros e os arcos da Lapa com algumas pichações e lindos grafites testemunham tudo.
Em geral só bebo guaraná e, eventualmente, vinho. Mas ali, de repente me deu vontade de tomar uma caipirinha. Sugiro, e Cira me acompanha. O tamanho do copo nos assusta. Acho que se tomássemos tudo entraríamos em coma alcoólica. Tomamos apenas um pouco e já estávamos saindo, quando avisto uma figura que me atrai. Impossível sair dali sem falar com ela. Não tem mais de 1,50, e ausente de todo aquele burburinho, toma um caldo de feijão de pé, no meio da rua, alheia a todo ao redor.
É Maria de Lourdes, que me diz ser rainha da passarela da escola de samba Estácio de Sá. Pergunto por que veste uma camiseta com a figura do Che Guevara, e ela me responde: “porque gosto dele”. E mais: conta que vem à Lapa toda semana; é sua diversão. Vejo naquela mulher uma das imagens do Rio.
No dia seguinte vamos a pé até Ipanema. Preciso conversar com o poeta. Lá chegando, sento-me ao lado dele e lhe explico porque em todos aqueles anos em que esteve na Rua Conselheiro Lafayette não vim conhecê-lo pessoalmente. Cira filma tudo. Conto a ele que recriei seu “Poema das 7 Faces”. Ele me olha em silêncio e não me responde nada, não entende o que aquela “doida” está a lhe dizer. Não faz mal, me despeço, com um beijo em sua cabeça, e prometo voltar. Quem sabe, “qualquer dia, qualquer hora, a gente se encontra...seja onde for, pra falar ...”
* Santos, Joaquim Ferreira dos- As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, Editora Objetiva,Rio de Janeiro, RJ-2001
** Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
O meu Rio de Janeiro!
ResponderExcluirO Rio do caos, da beleza natural.
O Rio das favelas, de onde das suas
janelas se enxerga o mar, o Cristo
com seus braços abertos, pronto para abraçar
quem quer que seja.
Que beleza Ris!
beijos
Um Rio lindo e lírico! Recebi sua crônica como um presente , Risomar! Ainda bem que não copidescaram seus versos: são bonitos demais.
ResponderExcluirBeijos.
Aqui mora a fênix, cara Ris. Por mais que alguns queiram destruí-la, a cidade mais progride em lábios que sussurram sedução. Não há por que resistir, que o gozo sempre vale a pena, assim como a leitura de mais esta sua crônica cheia de afeto. Parabéns.
ResponderExcluirRisomar,
ResponderExcluirSim, o Rio de Janeiro continua lindo. E a sua crônica em homenagem ao Rio está maravilhosa.
Pena que na Feira de São Cristovão você não teve sorte na hora do almoço. Tem um restaurante lá, não lembro o nome, aquilo é enorme, que faz uma carne de sol com aipim que se come rezando.
Viu os fogos em Copacabana ? A praia lotada ( eu tb estava lá )e não teve uma pessoa atingida por bala perdida. Foi um show de civilidade na virada do ano.
Que delícia anda a Lapa, não é verdade ? Muitos bares e restaurantes , tudo na maior tranquilidade.
A violência existe no Brasil inteiro. Por causa da propaganda enganosa, algumas pessoas assustadas, acreditam que serão recebidas no Rio com armamentos pesados e na primeira esquina serão assaltadas. Intriga da oposição.A violência acontece em pontos isolados.
Pode vir que o Rio é de paz e lindo demais!
Parabéns pela crônica ! bj
Para quem tem coragem de deixar o medo em casa o passeio é deslumbrante. O cenário nos convida a comportamentos mais leves e inabituais para quem é de fora. Os de dentro nos contamina. E suas palavras também, Risomar.
ResponderExcluirRisomar, você é pernambucana mesmo quando fala em outras terras.
ResponderExcluirParece haver um Jaboatão em cada pessoa do Rio de Janeiro.
Celamar, Daniel, Evelyne, Mara, Nubia, Urariano, meu Amigos queridos
ResponderExcluirQue delícia ler os comentarios de vocês.Obrigada! Fiquei até sem jeito de ir contra a mídia que fala em tanta violência, mas não poderia mentir. Não vi uma cena sequer que denotasse isso.
Celamar, quando voltar ao Rio, vou procurar esse restaurante que você fala.
Sim, Urariano,sou pernambucana até a raiz da medula. E em cada cidade vejo um pedaço da nossa terra.
Beijos em todos