quarta-feira, 13 de janeiro de 2010




Ela é a primeira-dama do coco-de-roda em Pernambuco. Salve, Selma!

* Por Marco Albertim


Foi em Vitória de Santo Antão, há 79 anos, que Selma do coco nasceu. Veio para o Recife com 10 anos de idade, mas se lembra do Sítio Cajoca, dos pais roceiros, e dos banhos no açude depois das sambadas. Numa época em que o ritmo era castiço, sem disputa entre os coquistas, duas vezes por ano – véspera e dia de São João – ouviam-se o ganzá, o pandeiro e o surdo. Na Mustardinha, ainda Selma Ferreira da Slva, foi lavadeira, faxineira, “tomando conta de casa.” Não conheceu os avós, mas sabe que o ritmo “era cantado pelos escravos descascando cocos em Alagoas.” Veio para Olinda, onde conheceu a coquista Jovelina, a mestra que recebia os pescadores com salvas de coco-de-praia. Está há cinquenta anos na cidade, casou-se com um motorista, teve quatorze filhos; só um está vivo, Zezinho, 51 anos e seu empresário. “Meus filhos foram morrendo de um em um”, diz, sem saber que seus olhos cobertos pela catarata são a crônica de uma raça. Enviuvou. Com o dinheiro que o marido juntara, comprou a casa onde mora, no Largo do Amparo, meia dúzia de casas depois da sede dos Lenhadores. Não tem saudades do marido, posto que a rotina sem trégua para devaneios, ocupou sua alma com o que pudesse palpar. Há 30 anos se apresenta ganhando cachê, e a boneca de Selma, a imagem de uma negra com mais de dois metros de altura, um de largura, ela apalpa com os dedos ágeis e tateantes. Sílvio Botelho, bonequeiro de Olinda, moldou-a para Selma. A boneca desfila no carnaval ao lado da patrona.

Ela é a primeira-dama do coco-de-roda; gravou oito CDs e um DVD, três dos quais na Alemanha, um na Bélgica e o resto em Recife. O DVD foi lançado no Sesc-Pompeia, São Paulo; todas as cópias foram vendidas numa noite. Sua música mais conhecida é A rolinha, “propositalmente de duplo sentido. Eu tava no quintal, vi um bocado de rolinha e tive a ideia da música”, diz, num riso maroto, enfraquecido pelo pouco caso que faz do assunto.

Eu vi um sapo correndo de lá
A menina que chorou
Quando olhei prá gaiola eu vi
A minha rola que voô
Oi corre, corre, corre
Pega, pega minha rola
"avôa", "avôa", "avôa"
Pega, pega minha rola
Eu não vou na sua casa
Prá você não ir na minha
Que tu tem a boca grande
Vai comer minha galinha

A letra reflete a simplicidade telúrica do roceiro, do matuto; a corrutela “voô” é uma minúcia plástica. José Ferreira da Silva, o filho, ajuda em algumas composições. Selma tem 16 netos, mora com a nora e o filho. Tem se apresentado pouco, e espera juntar mais dinheiro para remover a catarata dos olhos. Como patrimônio vivo, recebe da Fundarpe 750 reais por mês. Tem o título de comendadora da cultura; foi homenageada em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brasília. A Câmara Municipal outorgou-lhe o título de Cidadã Olindense. Em Brasília, ganhou do presidente Lula uma medalha de ouro e um quadro; em São Paulo recebeu o Prêmio Sharp de Música. Prosaica, diz que recebe 4 mil reais por apresentação, “mas em Olinda só pagam 3 mil”, acrescenta. O dinheiro serve ainda para pagar as nove pessoas que a acompanham: Welington (ganzá), Nilson (pandeiro), Safiro (tubadora). No coral, Valéria, a mesma que segue Aurinha do coco, Flávia, Adriana e Ionana. Zezinho, apesar dos mais de 120 quilos, segue-a na roda.

Enquanto não usa o vestido florido nas apresentações de palco, senta-se numa cadeira no terraço da casa. O portão está sempre aberto. Atrás dela, uma geladeira vertical, alta, cheia de refrigerantes, cervejas em lata. Há confeitos, biscoitos; o pequeno comércio que sustenta sua rotina e a dos netos. Ela não vê, mas distingue as vozes que, do lado de fora, na calçada, cumprimentam-na não como artista... Como cidadã antiga de Olinda...

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.


3 comentários:

  1. Eu adoro essas manifestações que resgatam
    a históra de seu povo. Mas me ocorreu lembrar
    que eu covardemente tomei uma corrida de uma
    "burrinha" no Dia de Reis em Miracema.
    Mas continuo adorando.
    Bela homenagem Marco.
    Abraços

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  2. Que crueldade o SUS não operar esta senhora. Aqui em Minas não há dificuldade nisso. Todos são operados gratuitamente. Achei bom conhecer Dona Selma, e saber da dificuldade dela com a vista. A partir dessa homenagem Marco, acredito que vai ser resolvido o problema.

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  3. Também quero saber por que ela não faz cirurgia pelo SUS...Acho que não procurou, pois aqui em SP qualquer pessoa pode se submeter a essa cirurgia.Acredito que em Olinda também.
    Adoraria conhecer e ouvir Selma.

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