quinta-feira, 7 de janeiro de 2010




Difícil talento – II

* Por Gustavo do Carmo


Na obra onde trabalhava, Agostino passou a ser ignorado por Elielton, que começou a desviar o olhar para ele. Ficaram uma semana sem se falar. Até que na segunda-feira seguinte, o ex-aspirante a Rei do Baião procurou o aspirante a caça-talentos para lhe pedir que buscasse sua filha na escola ao final do expediente, pois sua sogra havia morrido e ele precisava viajar para Campos acompanhar o enterro.
— Agostino, tu quer me ajudar mesmo? Então busca a minha filha na escola pra mim, por favor? Já tá tudo combinado com ela, que não quer ir ao enterro.
— Quando eu te ofereci ajuda não gostou. Depois ficou me virando a cara. Agora precisa de mim? Eu não deveria te ajudar não, mas como tenho muito carinho pela sua filha, eu vou te ajudar.
— Ah! Obrigado! Você caiu do céu. Mas vá lá o que você vai fazer com a minha filha, hein? É a minha menina preferida.
— Vai desconfiar de mim, eu não vou! Tá achando que eu vou abusar da sua filha? – ofendeu-se Agostino.
— Não. Está bem. Desculpa. Mas busca ela na escola para mim. Por favor?
— Está bem. Eu busco.

No final da tarde, Agostino foi buscar Michelle no colégio onde ela estudava no Méier. A menina de doze anos estava na aula de Educação Física e Agostino acomodou-se na primeira fila da arquibancada do ginásio escolar.

A turma de Michelle jogava vôlei. Agostino chegou no exato momento em que a filha do amigo salvava um ponto adversário. O aspirante a empresário encantou-se com o desempenho da menina. Viu nela uma nova jogadora da Seleção Brasileira. Imaginou-a em Olimpíada, Mundial e Grand Prix. Sempre ganhando medalha de ouro.

Foi despertado da sua utopia pelo apito do professor, que naquela partida também era juiz e treinador. O time de Michelle perdeu por três sets a zero e as colegas olhavam de cara amarrada para a menina. O professor a consolava por ter deixado a bola cair no chão e confirmar o matchpoint.

Agostino levantou-se da arquibancada, desceu à quadra e anunciou:
— Seu pai me pediu para vir te buscar hoje.
— É. Ele falou.
— Sinto muito pela morte da sua avó. Você não quis ir ao enterro dela?
— Obrigada. Não. Não gosto dessas coisas fúnebres. Podemos mudar de assunto?
— Sim, claro. Eu te vi jogando na aula. Você joga muito bem.
— Fala sério, né? Você não viu a besteira que eu acabei de fazer? Deixei cair uma bola fácil no chão. As meninas do meu time quase me bateram.
— Isso acontece. Todo mundo erra. Você gosta de jogar vôlei?
— Gosto. Tenho sonho de ser jogadora profissional. Mas acho que jogo tão mal que eu estou quase desistindo.
— Deixa de bobagem, menina. Você não pode dar valor aos seus críticos. Eu estou querendo te levar amanhã no clube para fazer um teste.

Michelle se aborreceu com a proposta e falou rispidamente:
— Olha só, apesar do senhor ser amigo do meu pai, eu não te conheço bem e não posso ficar saindo com você. Eu quero ir direto pra casa hoje, amanhã e sempre. Se está usando isso para me seduzir eu vou te denunciar por pedofilia, tá?
— Não, fique tranquila. A minha intenção é a melhor possível. Confia em mim que eu vou te ajudar a realizar o seu sonho. Por favor. Eu sei que essa proposta é digna de desconfiança. Eu quero apenas te levar para fazer um teste em um grande clube. Tenho a certeza de que será aprovada.
— Está bem. Vou pensar. Vou tomar um banho no vestiário e depois o senhor me leva pra casa. Uma colega minha vai com a gente, tá? Ela vai dormir comigo lá em casa.
— Claro, sem problemas.

Apesar de muito madura para os seus doze anos, Michelle ainda tinha a ilusão infantil de se tornar jogadora de vôlei profissional. Mesmo não sendo uma boa jogadora. Aceitou o convite do colega de trabalho de seu pai, que ia passar o final de semana viajando.

Agostino tinha a fisionomia típica de um nordestino: cabeça quadrada, cabelo preto repartido ao meio jogado para trás. Não era bonito, mas tinha boa aparência. Enfim, não tinha cara de um maníaco sexual. Já Michelle, no frescor dos seus 12 anos, começava a apresentar os seios em crescimento e tinha uma beleza mestiça de um nordestino de olhos verdes com uma índia de cabelos lisos e olhos puxados. Não despertava nenhuma fantasia em Agostino, que queria apenas descobrir um novo talento no vôlei.

No dia seguinte, um sábado de sol convidativo para a praia, os dois foram muito cedo a um clube em Botafogo para fazer o tão sonhado teste. Era quase meio-dia quando foram chamados pelo treinador: um senhor louro forte e de gênio mal-humorado. Não que ele seja de fato. É apenas um técnico exigente.
— Você quer mesmo ser jogadora de vôlei?
— Sim, quero muito – respondeu uma ansiosa Michelle.
— O senhor é pai dela? – perguntou a Agostino.
— Não. Sou amigo do pai dela.
— Então, o senhor é o olheiro dela? Seria um empresário dela?
— Bem, é o que eu pretendo ser.
— Então vamos lá.

O treinador louro foi para o fundo da quadra, carregando quatro bolas: duas na mão e duas embaixo do braço. Envolvendo o seu pescoço, um cordão com o apito prateado. Antes de deixar a menina no outro lado da rede e pedir gentilmente que Agostino se sentasse na arquibancada, avisou que mandaria quatro bolas fortes para a menina devolver.

Lançou a primeira. A bola passou rente a menina que ficou parada em posição de recepção. Gritou lá do fundo:
— PRESTA ATENÇÃO, MENINA!

Jogou a segunda e Michelle quase pegou. Na terceira ela nem se mexeu. A quarta ela acertou. A cesta de basquete no alto. Compreensivo, ao mesmo tempo irritado, o técnico aproximou-se da menina e recomendou:
— Você está muito tensa, minha filha. Vai descansar na arquibancada que mais tarde eu te chamo. Você como jogadora de vôlei joga muito bem basquete, mas se estivesse jogando basquete não ia acertar a cesta. Vai relaxar que eu preciso treinar o meu time.

Quando voltou frustrada para reencontrar Agostino, Michelle pediu para voltar pra casa. O amigo de seu pai fez questão que ela esperasse pela segunda chance, já que o treinador havia anunciado isso.
— Então não me dirija a palavra quando eu estiver concentrada. Disparou de forma ríspida e com voz embargada.

Depois de uma hora de silenciosa espera, na qual Michelle sequer olhou nos olhos do amigo de seu pai, a menina foi chamada pelo treinador a voltar para a quadra. Paternalmente, o profissional perguntou:
— Está mais calminha agora, minha filha?
— Acho que estou.
— Então segura. É a sua última chance. Vou te jogar mais bolas para te dar mais chances.

E o técnico jogou. Foram seis. As quatro primeiras caíram no chão sem que Michelle fizesse um único movimento. Na penúltima ela se jogou na bola, mas não conseguiu salvá-la. A última bateu em seu nariz. Não quebrou por pouco.

Impaciente, o técnico gritou:
— Não dá, minha filha! Não dá! Você tinha tudo para ser uma menina talentosa! Cadê o seu empresário?

Cabisbaixa e já enxugando as primeiras lágrimas, o treinador aproximou-se de Agostino e disse, com um pouco de dó:
— Olha, me desculpa. Você viu que eu dei duas chances para ela, mas ela não salvou uma bola! Lamento dizer isso, mas sua pupila é MUITO RUIM! Mande ela treinar mais! Tenham boa sorte e me deixem trabalhar!

Michelle deixou a quadra e o clube furiosa e aos prantos. Agostino a seguia tentando consolá-la. Chamou o técnico de grosseiro, de estressado e de sem visão. Incentivou a não acreditar nas palavras negativas. Quando convidou a menina para tentar mais uma vez, em outro clube, levou o fora definitivo:
— ME DEIXA EM PAZ! NUNCA MAIS ME DIRIJA A PALAVRA E NEM ME PROCURE NA SUA VIDA!
— Deixa eu te levar para casa então. Não posso deixar você ir sozinha. Prometo que eu não toco uma palavra com você.

Quase uma semana depois Agostino acabava de despejar areia do carrinho para o mestre de obra quando ouviu um “Desgraçado! Eu vou te matar, filho da puta!”. Achou que era na rua, mas quando virou-se para ver atrás de si, levou uma bofetada.

(Continua na próxima semana).

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores

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