segunda-feira, 11 de janeiro de 2010




Aquela febre engravidou até os sentidos de R. Garcia

* Por Eduardo Murta

O nome do lugar já bastava para encantar. Vila Bela da Santíssima Trindade. E aquelas histórias que beiravam o folclórico, então, só alimentavam o fascínio pela missão. R. Garcia não pensaria duas vezes. Mandassem fazer os arranjos para a viagem que ele iria. Sequer notara a sutil provocação. A de se escolher uma figura talhada na órbita urbana, ancorada invariavelmente em premissas científicas – e agnóstico – para escrever a história daquela gente quase desplugada do mundo. Que se enfeitava em cores para celebrar as festas à fecundidade e enxergava a procriação na conta do imponderável.

A mala estava pronta, quando lhe chegaram os primeiros relatos sobre o distrito. Instigantes. A população crescendo a uma velocidade de colmeias. Meninas-mães, meninos-pais sem ter ainda firmado os dentes. E lá se tratando o fenômeno da proliferação sem freios sob leitura singela: era mero efeito de uma bebida local... O preparado, cujo nome se encerrava em seis sílabas doces, vinha cultuado por gerações como uma espécie de amuleto da fertilidade. Kanjinjim.

R. Garcia anotou palavra por palavra no caderno verde que tomaria por agenda de reportagem. E sublinhou as particularidades que o fariam gelar, caminho afora: nada menos que três jornalistas desaparecidos na rota de apuração sobre o produto. Sem pista sequer. Pensou, claro, em se travestir. Padre... Não, não casava o perfil. Psicólogo, hummm... Pouco convincente para um vilarejo em que ruas de terra eram sinal de outra forma de ver o mundo. Barbeiro... Bom, porque salões eram cenários de segredos, mas faltaria um detalhe essencial: as mulheres. Nada sem elas se revelaria.

Aportou por lá na noite daquela quinta-feira carregando um aparato que o transformaria em verdadeiro caixeiro-viajante. Frascos de perfume, batons, lenços, isqueiros, pentes, barbeador... Bateria de porta em porta, se apresentaria com nome pomposo: prazer, Olegário Fortuna ao seu dispor. Gravata borboleta, sapatos escovados e óculos aros de tartaruga só para emprestar grau mínimo de severidade ao rosto juvenil. Fez sucesso, acolhido como novidade. E incorporado às intimidades a ponto de enjoar do café com geléia preta de mocotó, tradição na Vila Bela da Santíssima Trindade.

Introduzia uma pergunta aqui, uma dúvida ali, um comentário à frente. Ia azeitando as informações, dando vida ao quebra-cabeças. Descobrindo coisas ao sabor do acaso. Que Marilu já perdera a conta e nome dos filhos, tantos eram. Que Jacinto, aos 22, se convertera em avô. E que, sigilo supremo, os porões rurais se abriam a uma sociedade secreta dedicada a patrocinar torneios de orgasmos. Prêmios para o mais alongado, ao que se desse em escalas múltiplas, ao que inovasse no quesito originalidade. Viu lenda em todos os relatos, mas resolveu registrar letra por letra.

Desatando o novelo, foi jogando calor sobre a bruma em que o Kanjinjim estava envolto. Delírio, desvendara, a tese de que era herança da cultura escrava. Farsa, na verdade, porque nascera em clubes de caminhoneiros de beira de estrada, ali pela década de 60. Tudo para incendiar os desejos nos bailinhos recatados do lugarejo. A fórmula surgiu assim, como do nada, rodou de mão em mão, reapareceu numa festa, noutra e, ano seguinte, carregava o carimbo de afrodisíaco. Nada mais que chá de sementes de abóbora, raspa de gengibre, cachaça desdobrada e canela.

Olegário Fortuna, melhor, R. Garcia, já tinha ponto por ponto o que precisava para escrever, despir o mistério por inteiro. Começo, meio e fim. Incluindo o paradeiro dos jornalistas que o precederam, todos embarcados como alimento para leões de circos paraguaios. Suas revelações não deixariam pedra sobre pedra. Mas faltava um item fundamental: homem de sangue espanhol, julgava que o trabalho só se legitimaria se ele, pela prova dos nove, também experimentasse o Kanjinjim.

Planejou a volta para a capital, mas agendou antes a despedida no Bar do Zé Pretinho. Fez baixar o primeiro copo do líquido misterioso à mesa. O segundo... Ao que se recorda, chegara à conta do quinto, quando pousaram-se os dedos dela sobre os dele, entrelaçando-os. Deixou que acontecesse, aleatório, porque era ritual de partida. Estranhou na manhã seguinte, ele e comadre Dolores, nus, lado a lado na cama. Praguejou-se. Mirou-lhe as tetas cansadas, 84 anos de jornada aqui na Terra. Conferiu a penteadeira: duas garrafas de Kanjinjim vazias.

Fez olhar de periscópio, perscrutando. Deu com o quadro negro afixado à parede. Números sobre números em giz. O de agora era um 12 caprichosamente desenhado. Ruminou.... se lembrou das sociedades secretas de culto ao orgasmo. Valei-me!!!! Juntou as roupas num salto. Desacelerou, a que não despertasse a velha Dolores. Pegou o rumo do hotel, da rodoviária, de casa. A vila ficando pra trás, foi desnudando os significados daquela febre que fecundava os poros, engravidava os sentidos. Dela estava disposto a contar tudo. Quase tudo...

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.


6 comentários:

  1. Adorei! Divertidíssimo texto.
    Do Tal do Kanjinjin quero distância
    e de Vila Bela da Santíssima Trindade
    quero nem o mapa!
    Parabéns
    Abraços

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  2. Vou falar com o repórter R. Garcia, que ele envia um táxi, você vai e nem percebe que foi. Depois, conta tudo pra gente, hein, Núbia.
    Vai um beijo literário

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  3. Lembrei de um conto da Clarice Lispector que a mulher obriga um rapaz de 17 anos a ser seu amante. Só com chá de Kanjinji, né não? Muito bom o texto!

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  4. Tem muita gente jovem precisando desse elixir. Quem o descobrir ganhará mais dinheiro do que a Pfizer e o seu comprimido azul, pois aquele revela o desejo e este não tem efeito se não se fizer um clima para o amor. Depois da leitura, pessoas estarão arrumando as malas para Vila Bela.

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  5. Murta, as colegas gostaram muito do texto, somente com a leitura do Kanjinjim.
    Eu as acompanho no gosto.
    Abraço.

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