quinta-feira, 2 de março de 2017

Fálicas


* Por Rosane Magaly Martins


Ela descende de uma linhagem de mulheres às quais foram negados quase todos os direitos. Não sabia disso, nem se poderia ter mudado seu destino, traçado quando nasceu. Tinha escrito na testa e no braço direito duas sinas: a de pobre e a de pecadora.

Lembrou de sua mãe pedalando pelos morros da cidadela, pelas madrugadas que salvavam cristãos, para não perder os prêmios miseráveis no final do mês. O prêmio era sempre algo que não servia para ninguém, a não ser para aqueles mortos de fome que tinham como destino acordar todos os dias às quatro da madrugada.

Ela colocava aquele vestido surrado, branco com pequenas flores - doado por uma família menos pobre, a sandália gasta e pedalava. Pedalava seu tempo, suas ruas, cada pedrisco e buraco que se avizinhava. Nestes trajetos da madrugada silenciosa, lhe vinham sonhos magros.

Recordou de sua pequena avó paterna caminhando morro abaixo - antes que qualquer galo da vizinhança despertasse, com um punhal escondido na bolsa, e descia entre os pés de carrapicho, de língua de vaca que cortavam suas pernas ainda quentes da cama. Ela tinha medo das maldades do mundo, dos homens que espreitavam as virgens que iam ao trabalho pra separação das folhas frescas de tabaco, antes do sol nascer.

A avó não tinha sonhos, pois nunca havia dormido uma noite completa. Não havia cinema, radionovela, nem revistas. Era só acordar e trabalhar até que novamente o corpo, fadigado por caminhadas e horas sucessivas cheirando fumo, com mãos grossas e ardidas, pudesse finalmente descansar.

A outra avó - mãe da mãe, não vinha de melhor estirpe. Desde os 14 anos tinha sido entregue a um homem que só fazia-lhe às vezes de fêmea para satisfazer seu pau que lhe estocava várias vezes ao dia. Era homem rude, que cuspia fumo mascado e levantava seu vestido quando lhe proviesse. Eram filhos e filhos saindo de si, sem que tivesse tempo de chorar, de fugir ou de trocar seu vestido emprestado, roto e sujo.

Não sabia de cantigas, de carinho, de banhos em tinas quentes, nem de bonecas. Tudo era feito a navalha, no frio. O banho diário, a roupa que deveria ser limpa semanalmente, a louça suja passada nas águas frias do rio que escorria perto. Não olhava nos olhos, pois poderiam descobrir seus segredos. Desde que sangrara sentia os olhares desejosos dos homens. Não entendia as obscenidades que ouvia quando passava com o vestido muito curto, os seios meio em riste, as cochas firmes pelos exercícios de ir e vir do trabalho.

A avó paterna não podia mais com aquilo. Morava feito macaco, em lugar íngreme, feio e úmido. Seu filho mais velho havia tido o crânio amassado por um ônibus - enquanto dava a ré, em frente da igreja. O filho mais novo, desde então, nunca mais riu nem falou. Ele lembrava da cabeça do irmão escorrendo pelo meio fio, dos gritos desesperados das vizinhas e do motorista que não havia visto o menino na bicicleta. O filho mais novo da avó esqueceu o que era sonho, e desde então suas noites longas eram banhadas de choros e lamentos das carpideiras do velório do irmão.

A bordadeira deixou o pano de enfeitar a cozinha pronto, em ponto cruz azul, sobre a mesa. No outro dia a vizinha viria apanhá-lo, para dar à amiga que iria casar sábado ao final da tarde. Soube que ela tinha conseguido um bom homem - um homem para casar. Quem o apresentou foi a irmã, que trabalhava num prostíbulo por dinheiro e prazer. A irmã disse: com esse você vai casar. É homem direito.

A avó materna chorava. Não queria mais tanto filho, nem ser trepada todas as noites pelo marido cachaceiro. Não tinha mais forças para dizer nem que sim, nem que não. Nem a reza lhe salvaria, pois não havia lugar no céu pra tanto filho. Ela limpava o gozo do marido com o paninho que a filha trouxera da malharia. Não havia sorriso, só as brigas dos filhos, aquele que fugia para mendigar, o outro para roubar e a mais velha, pra trepar com qualquer um.

Lembrava da mãe, chorando na morte do marido tão bom, escolhido a dedo pela irmã puta. Os bons morrem antes. Ela havia ficado para purgar seus poucos pecados, sua aspereza, queimar a carne sem prazeres, aprender a cerzir-se por dentro.

A avó paterna, melhor sorte não teve. Dizem até que rezou muito pela própria morte. O marido a deixou com a miséria nas mãos, um contrato de aluguel vencido e onze filhos doentes. Por sofrer tanto haveria de ser recebida com dádiva das novenas, lugar num prometido céu.

A outra avó, que enrolava fumo, continuaria na safra semestral. Mas acreditava que haveria salvação, depois da morte do marido, quando poderia dormir uma noite inteira. O filho calado partiu, criou família. Ela não teria mais com o que se preocupar a não ser com a manutenção das sepulturas.

Dizem que a mãe era puta - dava pra qualquer um que lhe prometesse prazer, que era fogosa. O prometido homem bom guardava o tesão para as outras enquanto ela ardia nas madrugadas. Seu prazer era fugir pra fábrica, desfilar com seus vestidos que deixavam o sutiã pouco à mostra e usar o perfume de catálogo comprado em duas parcelas.

A avó paterna não cometeu pecados. Tinha desejo pelo padre da paróquia. Imaginava-se por vezes levantando a batina pra receber as bênçãos, depois de subir em seu ventre e fartar-se dele durante a confissão. O segundo marido, um santo, pouco pode fazer pela mulher viúva que não mais descia o morro com o canivete na bolsa. Ele queria rezar, levá-la à quermesse, à festa dos amigos e mostrar que não era boiola, nem anormal por ter 40 anos e ser virgem. Foi ela quem lhe despertou supostos pecados, ao passar por ele com as cochas quentes, as faces rubras de quem precisava ser trepada, feito erva daninha.

A outra avó desistiu de querer outro homem na viuvez. Houve até dias em que queria ter nascido homem. Não usava calcinhas, para que os filhos não as encontrassem no chão, ao acordar. Sempre que ele trepava nela, percebia os olhos lhe espiando pelas frestas do sótão.

O prazer não era o da carne crua, do banho pelada, do rio gélido que acalmava as partes pudendas e calorosas. O prazer não era mais do coito, das vogais que escapavam da boca, que não habitava mais a cama.

O que diziam pecado estava tatuado nela.

A cidade permaneceu impávida.

O rio já não lava as partes das moças, nem as louças, nem as roupas da pobreza.

A que restou trazia algumas cicatrizes, descendia das mulheres que enrolavam fumo, teciam panos, pariam filhos. Espera ainda hoje insana, pelo homem bom, que lhe rasgue a carne, não morra e lhe deixe ir.

* Advogada, escritora, tutora e professora IFSC e Fiocruz.



Nenhum comentário:

Postar um comentário