segunda-feira, 6 de março de 2017

A revolução dos não bichos

* Por Paulo Ghiraldelli Jr.


Para Nana Lacerda


Uma cenoura é diferente de um esquilo não no mesmo sentido que um esquilo é diferente de uma vaca. Muita gente que dá palestra por aí não sabe disso. Conhecem o tipo? Sim, até na Unicamp tem gente assim! É aquele que adora dizer que quem não mata uma vaca vai acabar matando uma cenoura, e então sai às gargalhadas, achando que agradou o povo. Agrada só o gaúcho da fronteira, mas não os que vivem em centros urbanos, e que já sofisticaram sensibilidade e opinião. Feito isso, percebem que não agradam e então correm atrás do prejuízo. Mas aí soa falso. Há gente assim. Há gente que nunca ouviu falar de direitos dos animais, mesmo sendo professor.

No campo dos direitos dos animais há três posições básicas. Seguem abaixo.

Há os que lutam pela emancipação animal dizendo que se aceitamos a regra da igualdade moral para o tratamento entre os da nossa espécie, não temos nenhuma justificativa para não estender esse princípio para nosso relacionamento com os seres de outras espécies. A esfera moral nossa cabe a todos nós que sofremos, independentemente de capacidade de raciocínio ou autonomia, e então, se é assim, devemos incluir nessa esfera também os que sentem, como os animais. Em geral, essa argumentação vem do utilitarismo. Na prática, significa sempre seguir a regra utilitarista que prega que a felicidade (ou bem estar) da maioria possível é o que importa mais. Assim, onde há condições de ser vegetariano, que sejamos vegetarianos. Onde há condições de evitar animais em experimentos, que evitemos. Enfim, que se diminua ao máximo a crueldade e o sofrimento.

Há os que existem direitos naturais objetivos, e que há valor intrínseco em todos os seres que têm uma vida. Há aí no critério de vida, também a ideia de que animais são sencientes, e assim, ganham direitos objetivos que são relativos à vida. Desqualificar a vida como um bem não-objetivo seria negar todo e qualquer tipo de direito. Em geral, essa argumentação vem do jusnaturalismo. Nesse caso, estamos diante da ideia de seguir um princípio, ou seja, uma teoria deontológica, sem acomodações contingenciais. Assim, o vegetarianismo se impõe e também o fim de experimentos – ou isso ou se está fora do campo ético-moral.

Uma terceira posição evita equiparar animais a pessoas, mas não abre mão da defesa dos animais. Nessa ética há menos a ideia de “direito dos animais” e mais a ideia de responsabilidade do homem em relação a eles, como parte da responsabilidade humana por toda a natureza. Não há sentido, nessa ética, para dar direitos aos animais, mas há bastante sentido em protegê-los dentro do nosso direito, que nos faz responsáveis por uma série de coisas no mundo sem o qual o mundo seria um poço sem fundo de desrespeito.

Essas posições são da ordem da ética e, enfim, claro, influenciam o direito. Uma coisa outra é o modo pelo qual as pessoas se sensibilizam com os animais e, então, se possuem propensão à teoria e à confecção de leis, vão se aproximando dessas teorias. Nesse caso, falamos do despertar das pessoas para a “questão animal”.

Penso que quando entramos nesse campo, vale lembrar os estudos de suavização das relações que nos fizeram criar sensibilidade ecológica e pelos animais, e não podemos descartar de como isso, no âmbito geral do crescimento da suavização da vida, foi algo bem estudado por Foucault. Foi ele quem mais introduziu na noção de modernidade, de modo bem decisivo, a questão que Marx chamou de “missão civilizadora do capital”, e que Weber batizou pelo título mais filosófico de “racionalização” ou “desencantamento do mundo”. Essas condições vieram do âmbito da revolução criada pelo advento da “sociedade de mercado”, que nos obrigou todos, ao menos no Ocidente, a sermos tolerantes com os diferentes. Incluímos na vida as crianças, depois as mulheres, depois os escravos e servos e, agora, estamos incluindo os animais. O cachorro vem em primeiro lugar. Antes de todos os animais virem, virão robôs. Creio que Richard Rorty, aliás, nem daria muita atenção para as posições de direito e ética animal, mas ficaria exclusivamente na análise das possibilidades pragmáticas que nos levam a sermos mais sensíveis. Para ele, todo o resto, entre sermos jusnaturalistas ou utilitaristas ou adeptos da tese da responsabilidade, ficaria em segundo plano. No campo da vida prática, o que conta é olharmos a termômetro da sensibilidade.

Peter Sloterdijk diz que seremos mais sensíveis porque estamos na “sociedade da abundância” (Galbraith), e nesta, cabe darmos a mais parceiros condições de participação maior. Os animais entrarão nessa. Deixarão de ser pacotes de hormônios que nos provocam doenças para virem a ser de fato companheiros de casa. Fizemos isso com os escravos modernos, em geral negros. Não os comíamos, claro, mas eles eram  – de fato ou só pela fama – focos de doenças, e então os trouxemos para o interior da vida e da casa, e as coisas caminharam cada vez melhor. Não há dúvida que a sociedade multi-étnica que temos hoje, ainda que com olhares sinistros aqui e ali de gente como Trump, é melhor do que as do passado. História e natureza se fundem nesse novo tipo de história, e assim veremos e explicaremos, daqui a pouco tempo, um fato curioso: não estaremos tanto mais discutindo éticas relativas às questões animais, e sim procedimentos de inclusão como necessidade aceita por todos.

O pragmatismo é que nos conduzirá. E ele está indicando que precisamos estancar a crueldade, e incorporar os animais aos nossos círculos de bem querer. Cada animal será “um de nós”. Os cachorros tomarão sempre à frente, como já fizeram. É provável que as baratas e os mosquitos da zika fiquem por último. Mas isso, garanto, não igualará animais a cenouras, apenas deixará mais claro que há palestrante com cérebro de cenoura.

* Filósofo.


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