domingo, 5 de fevereiro de 2017

Por uma identidade

* Por Pedro J. Bondaczuk


João queria revolucionar
o mercado inflacionário do sonho.
Resolveu que iria comprar
com seu parco salário-mínimo
um mundo encantado para Maria.
Um planeta inteiro, onde
milhares de girassóis dourados
iluminariam os dias oníricos
e as girândolas, como carrosséis
coloridos, seriam as estrelas noturnas

Compraria um vestido de seda
fiado na roca da vontade,
tingido com a mais pura púrpura
de um contido bem-querer
em que as formas de Maria
seriam realçadas. Sem as
 estrias roxas das varizes
nas suas pernas fortes,
de canelas fininhas,
que o dono da tecelagem
lhe deu, através dos anos,
como abono-produção.
Sem as marcas da celulite,
da falta da luz do sol.
Sem os sinais de desnutrição,
presentes de debutante,
dados pelos seus pais,
no dia em que completou
seus verdes quinze anos.

Compraria, para Maria,
um diadema dourado
para prender seus cabelos
que o tempo, tinhoso, pintou.
Marfim do mais fino, genuíno,
que substituísse a dentadura,
enegrecida pelas cáries,
borrada de nicotina,
prêmio macabro
a marcar-lhe o sorriso
que a miséria lhe outorgou.

Compraria um véu diáfano
para cobrir de mistérios,
ao estilo oriental,
o rosto magro de Maria,
sulcado de cicatrizes,
textura de pergaminho
onde a vida escreveu
uma história banal.
Apagada. Triste.
Comum. Proletária,
de anos de posses minguadas,
e de filhos para criar.

Na fila modorrenta do INSS,
João Tibúrcio da Silva,
nordestino, com a graça de Deus,
portador da senha de atendimento
de número trezentos e sessenta e cinco,
esperava para receber
o décimo auxílio-natalidade.

Mas queria, por causa de Maria,
sofrida, pisada e grávida,
revolucionar o mercado
inflacionário do sonho
e conquistar, não se sabe a que custo,
a própria identidade!

(Poema composto em Campinas, em 2 de março de 1981)

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk


Um comentário:

  1. Li e comentei no Facebook. Acho uma irresponsabilidade pessoa nascida na década de 1940 ter dez filhos, ainda que conheça pessoa da década de 1950 que teve ainda mais. Mas o poema é bom. A personagem é boa também, apenas não tem juízo.

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