segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O canto


* Por Raul Fitipaldi


Ouviam-se lavadeiras cantar de joelhos no arroio
Mamãe cantava cozinhando sua manhã
Papai cantava ritmando o martelo
Vizinhos, vendedores ambulantes
Pássaros e rádios cantarolavam
Cantavam os jovens estudantes no recreio
As freiras no convento
Coroinhas na missa, cantavam
As moças saindo da fábrica entoavam amores
Rapazes de sexo urgente murmuravam boleros
Tinha avós de cantigas no pátio
Soavam rondas coloridas
Cavalos marchavam musicais no paralelepípedo
As harmonias subiam e desciam pelos ares
Dançavam roupas no varal das casas baixas
Ai pena, peninha, grande pena
Não se canta a um telefone celular
Não se canta a um computador
Não se canta a um corporate center
A um elevador e sua estúpida gravação mecânica
Não se canta para ninguém nem para nada
Ai pena, peninha, grande pena
Que voltem os operários e os estudantes a cantar nas avenidas
Que volte o canto dos pobres,
Antes que os robôs chorem por nós
E percamos para sempre o canto.


* Poeta e jornalista

Um comentário:

  1. Um lamento lúcido e poético, pois a poesia é pura lucidez dentro de um sonho. A minha mãe cantava na máquina de costura, assim como minha avó. Então, meu avô chamava a máquina de instrumento musical. Vamos cantar?

    ResponderExcluir