Cérebro faz milagres, mas nem tanto
O cérebro humano é uma das “máquinas” mais fascinantes e
perfeitas que há. Não aparenta, contudo, que se trate dessa maravilha que é.
Dissecado, revela-se massa estranha, quase informe, cheia de dobras e rugas,
que lembra, até mesmo (com o perdão da comparação) um monte de fezes. Claro que
essa aparência engana. Afinal, o cérebro é a “sede” da vida. Cabe-lhe (quando
normal e sadio) o comando de todo o organismo e, mais do que isso, a capacidade
humana de raciocinar, de imaginar, de criar e de entender o concreto e o
abstrato. Há quem garanta que nele reside essa coisa imaterial e abstrata que
se convencionou chamar de “alma”.
Por causa da sua importância e, sobretudo, fragilidade, a
natureza propiciou-lhe poderosa proteção óssea, bastante rígida: o crânio, com
rigidez comparável à do concreto, se não maior. Todavia, a despeito da eficácia
dessa “armadura” natural, determinados traumas na cabeça tendem a afetar, e
afetam, o cérebro. Na maioria dos casos, isso é fatal. Resulta na morte de quem
o sofreu. Algumas vezes, porém, a vítima se recupera, posto que com seqüelas das
mais variáveis, dependendo da intensidade da “agressão externa”. Há casos,
raros, em que esse órgão se regenera por completo. Conexões neurais afetadas ou
rompidas se recompõem ou são criadas (às vezes), novas, diferentes das
originais, mas que funcionam tão bem, ou melhor, do que as anteriores, atingidas
pelo trauma. Como e por que isso acontece? Não sei! Não creio que os tantos
neurologistas, por mais geniais que sejam, saibam. Somente especulam.
Por que trago isso à baila? Por haver ficado intrigado com o
que aconteceu com o jornalista e escritor norte-americano, Ambrose Bierce.
Assisti, não faz muito, a um documentário, no canal de televisão a cabo “History”
a propósito desse polêmico personagem. À certa altura, é abordado um episódio
em que ele foi gravemente ferido no campo de batalha, durante a Guerra da
Secessão dos EUA: levou um tiro na têmpora. Socorrido, permaneceu dias entre a
vida e a morte. Quando todos já o davam por condenado ou, caso sobrevivesse, se
apostava que ficaria com severas seqüelas (ou orgânicas, ou de raciocínio ou
ambas), miraculosamente Ambrose Bierce sobreviveu. E, aparentemente,
recuperou-se por completo, sem que o físico e a mente mostrassem qualquer
irregularidade.
Até aí, tudo bem. Por uma razão que os neurologistas não
explicam, seu cérebro refez conexões neurais ou, então, criou novas. O que me
intrigou foi o fato do roteirista do referido documentário do “History” ter
sugerido que, a partir dessa recuperação, Bierce desenvolveu, subitamente,
assim, do nada, uma habilidade específica que antes do tiro quase fatal, não
teria: o talento para a Literatura. Seria isso possível? Essa recombinação
(raríssima) de conexões neurais é capaz de fazer, por exemplo, alguém que nunca
escreveu coisa alguma subitamente se tornar um William Shakespeare, ou Edgar
Alan Poe ou outro gênio literário qualquer? Ou, quem nunca pintou, de repente
se transformar num Leonardo da Vinci, sem o aprendizado prévio das complexas
regras e das elaboradas técnicas de pintura, assim, do nada? Duvido!
Ademais, no caso de Bierce, já aos quinze anos de idade,
portanto muito antes de ser ferido, ele já atuava em um pequeno jornal regional,
posto que como chargista. Além disso, começou a escrever os contos que o
consagraram muito tempo depois, décadas após, aos 40 anos, em época posterior,
inclusive, a um longo período na Europa, onde, certamente, deve ter aprendido
os macetes da Literatura. Entendo que Bierce já tinha latente, em si, o
talento. Apenas descobriu-o, e influenciado pelo jornalismo, aliás como uma
infinidade de escritores, que fizeram, fazem e farão uma trajetória segura
entre redações de jornais e revistas e a prática da Literatura.
A jornalista e escritora Heloísa Seixas narra, da seguinte
maneira, esse episódio traumático na vida de Ambrose Bierce, na introdução do
livro “Visões da noite” (Editora Record, 1999), que ela traduziu: “(...) Durante
uma batalha na Virgínia, salvou um companheiro ferido em meio ao fogo cruzado,
o que lhe valeu, apenas três meses depois de alistar-se como voluntário, a
patente de sargento. Seguiram-se três anos de batalha, durante os quais Bierce
se destacou de várias maneiras, até chamar a atenção do general William Hazen,
que se transformaria numa figura-chave em sua vida. Hazen, percebendo o valor
de Bierce (que então já era segundo-tenente), promoveu-o a primeiro-tenente e nomeou-o
para uma das missões mais perigosas da guerra: fazer reconhecimento de campo
antes das batalhas. Bierce ainda não completara 21 anos”.
E Heloísa prossegue: “A nova função agradou ao rapaz por
várias razões: primeiro, era um trabalho solitário. Segundo, incluía a feitura
de mapas e a redação de relatórios, tudo com rapidez e exatidão, já que eram
vidas que estavam em jogo. E foi assim que Bierce trabalhou em perigosas
missões de reconhecimento nas campanhas do Tennessee, de Chattanooga e de
Atlanta, até o dia 23 de junho de 1864 (ia fazer 22 anos dali a um mês) quando,
na batalha da montanha de Kenesaw, recebeu uma bala na cabeça. ‘A bala rachou meu crânio como se fosse uma
casca de noz’, diria ele mais tarde, com seu habitual humor. Por sorte, Bierce
foi resgatado com vida e conseguiu sobreviver ao ferimento. Convalescente, foi
mandado para junto dos pais. Mas, assim que se recuperou — depois de meses
tendo “brancos” e sentindo tonteiras –, voltou à ativa, servindo na Geórgia até
que a guerra terminou, em abril de 1865. E dessa vez não voltou para casa. Seus
pais nunca mais tornariam a vê-lo”.
Que a recuperação de Ambrose Bierce, sem que lhe ficassem
quaisquer seqüelas, foi miraculosa e raríssima, ainda mais levando em conta o
estágio da Medicina da época, não restam dúvidas. Mas atribuir seu reconhecido
e admirado talento literário a uma bala que lhe feriu o cérebro, entendo (e
aposto) que é fantasioso demais. É tese – até prova em contrário – que não se
sustenta. O ferimento pode ter mudado,
sim, sua percepção da vida. A iminência da morte, seja qual for a causa, tende
a provocar essa consciência nova nas pessoas. Todavia o ódio que sempre mostrou
pela humanidade – a começar pela própria família – era algo que ele já
demonstrava na própria infância. Nada teve a ver, portanto, com o incidente de
guerra. E muito menos seu talento literário, fruto de esforço, persistência,
leitura, capacidade de observação, imaginação fértil etc.etc.etc., não nasceu
daí.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Nenhum comentário:
Postar um comentário