Causos de beira-rio
* Por
Peregrino Junior
Não acontece nada. A
vida parou, estagnada e podre. A cidade permanece adormecida numa calma
resignação silenciosa. Terra de gente pobre - caboclos sem ambições, sem
remorsos, sem problemas. Nem dramas de consciência, nem inquietações de
coração. Ignorando seus direitos - que direitos? - e não sabendo o que vai pelo
resto do mundo, as fronteiras do seu espírito coincidem com o horizonte curto
dos seus olhos: a curva mansa do rio e o corte vertical da floresta. Nem
alegria. Nem esperança. Esperança de quê? Liberdade, isso sim. A miséria não é
afinal uma forma de liberdade? Mas para quê, se não sabem o que fazer daquela
estranha liberdade das matas sem-termo e sem dono, dos rios preguiçosos que não
descansam?
Frei Jacó aparece por
lá, vez por outra, com as Missões: casa, batiza, absolve, reza... dá presentes,
ensina catecismo. É teimoso no ensino da doutrina cristã:
- Sois cristão?
- Sim, pela graça de
Deus!
- Quem é Deus?
- Um soberano Senhor,
criador do Céu e da Terra.
- Deus tem sempre
existido?
- Sim, porque não teve
princípio nem há de ter fim...
- E para que fim nos
criou Deus?
- Para amá-lo nesta
vida e gozar depois d’Ele no Céu para sempre.
Frei Jacó - bom frade
ingênuo, a cabeça branca, os olhos sem malícia, fica espantado com aqueles
caboclos que vem do centro - meio do cerrado do seringal, do coração sombrio da
mata calada. Chegam tímidos e nus. Índios mansos, tristes e miseráveis. Frei
Jacó dá-lhes roupas e calçados, além de terços e santos. Impõe uma condição:
que assistam à missa vestidos: "com roupa de ver Deus".
Concordam, com um
aceno de cabeça. Vestem a roupa, calçam os sapatos - e endomingados,
manquejando, os sapatos machucando os pés grossos, vão para a igreja. Mal
terminada a missa - na própria calçada da igreja - descalçam os sapatos - ufa!
que alívio! - e despem as roupas - Eta calor brabo! Depois atravessam
dignamente a praça, nus, com a mais grave naturalidade, e voltam para suas
malocas, contentes e tranqüilos.
Frei Jacó benzia-se,
perplexo:
- Não compreendo...
Que andassem
descalços, concordava. Mas, nus, Senhor Deus, que indecência!
Não compreendia...
Houve nova combinação: que fôssem à igreja descalços, mas não tirassem depois
as roupas.
Eles aceitam a
concessão: vão à igreja de pés no chão; mas vestidos - que sacrifício! - Acabam
aceitando a imposição de Frei Jacó - não há outro jeito - pra ganhar presentes.
Se na igreja aparece
uma moça pintada e bem vestida - saia de chita florida, fita vermelha no cabelo
- os índios viram a cabeça, curiosos - puranga! - e Frei Jacó faz um sermão
iracundo, "contra essas pessoas sem modéstia que vão à casa de Deus
indecentemente vestidas, para dar maus exemplos". "Que Deus se apiede
dos pecadores que assim procedem!"
Os índios não entendem
patavina do que ele diz. Nem a moça de fita vermelha no cabelo. É mulher-dama,
mas de uma inocência de arcanjo: peca sem saber que peca, com a naturalidade
boa do instinto! Axi! e isso é pecado?
Depois da missa, ou da
novena, pulam todos pra dentro da montaria - levando o que foi possível trocar
por borracha, balata, pupunha, pacovão, que haviam trazido do centro: -
querosene, sal, farinha, cachaça, brotes, fazendas, agulhas e linha - e lá vão.
No confessionário, uma
vez Frei Jacó ficou revoltado com o cinismo de um caboclo que tinha trocado de
mulher:
- Uai, Seu Vigário,
mudar, mesmo pra pior, é bom!
Eles afinal tinham lá
a sua filosofia.
Uma vez a filha do
cearense Macário adoeceu e lá chamaram o médico do Posto de Saúde. Quando o Dr.
Bento quis examinar a cunhatã, ela resistiu envergonhada num inesperado acesso
de pudor.
E o pai aconselhou,
gravemente:
- Besteira, menina.
Deixa disso, que olho de médico é que nem ouvido de padre...
Mas se a doença era na
mulher, ele pensava diferente. Quando o Dr. Bento, chamado para examinar-lhe a
mulher, quis levantar-lhe a saia e apalpar-lhe a barriga, ele o advertiu sem
dissimular o tom de ameaça:
- Doutô, muié minha só
tem doença daqui pra riba!
E marcou com a mão a
cicatriz do umbigo.
Anastácio, cearense de
voz mansa, era a única pessoa próspera do lugar e tinha ganho uma bolada no
seringal. A conselho de amigos foi à praça botar o dinheiro no banco. Tinha
feito uma só compra: um relógio. Achava bonito com correntão de ouro, mas não sabia
ver as horas. Um amigo perguntou-lhe:
- Que horas são,
compadre?
Encostou o relógio no
ouvido e respondeu sem embatucar:
- A hora eu não sei.
Mas o pau tá comendo...
De tarde vai ao banco,
assina penosamente um cheque no valor de todo o dinheiro de manhã depositado. O
pagador conta o dinheiro - e ele olha, atento e calado.
No fim, quando o
empregado lhe entrega o cobre, Anastácio explica com a maior simplicidade:
- Não quero não,
senhor! Eu queria só era ver se o meu dinheiro estava aí mesmo.
Mas um dia houve na
bodega da vila um estrupício ¾ e o cearense explicou o "causo" com
natural tranqüilidade:
- Eu estava no meu
canto queto. Tomando minha cerveja. Tava com dinheiro no bolso. Veio o cabo - e
eu só vendo o jeito dele - começou a botar gente pra fora. - Sai, cambada
safada! - E eu queto. Só vendo o jeito dele. Eu tava com a minha quicé no
quarto. Ele veio em direitura pra minha banda e me intimou:
- Pra fora!
E eu respondi em cima
da bucha:
- O senhor é
autoridade, mas não está com a razão. Eu não estou fazendo mal a ninguém.
Aí o cabo cresceu pra
mim, de chanfalho em punho, e tentou me tocar. Neguei o corpo, e meti a faca
nele. O senhor vê? Eu não tive culpa. Depois, nós acertamos as contas.
Conversando é que a gente se entende. Não é verdade, meu branco? O senhor sabe,
isto aqui está ficando muito ruim. Quero ir pra minha terra. O senhor sabe: eu
sei trabalhar. E homem não faz pouco de mim... Não tenho medo de careta, nem
levo desafora pra casa.
Carregaram o cabo pro
Posto de Saúde e chamaram o doutor pra tratar dele: estava se esvaindo em
sangue.
O cearense, sem se
afobar, no meio da confusão, safou-se de mansinho. Foi-se embora, como se a
coisa não fosse com ele. Mais que depressa, pulou pra dentro da montaria - e
mupicando o jacumã, desapareceu na forquilha do igarapé...
Quando a noite sem
estrelas sepultou a paisagem triste, o silêncio retornou ao Largo da Matriz.
E Frei Jacó continuou
a ensinar catecismo e a dar roupas aos índios: duas inutilidades inofensivas.
- Não matarás! era a
lição do Evangelho.
Mas com o cearense
nunca mais ninguém tirou prosa: ele não matou nenhum cristão, defendeu o seu
direito...
(A mata submersa, 1960)
*
Jornalista, médico, contista e ensaísta, membro da Academia Brasileira de
Letras.
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