sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Causos de beira-rio


* Por Peregrino Junior


Não acontece nada. A vida parou, estagnada e podre. A cidade permanece adormecida numa calma resignação silenciosa. Terra de gente pobre - caboclos sem ambições, sem remorsos, sem problemas. Nem dramas de consciência, nem inquietações de coração. Ignorando seus direitos - que direitos? - e não sabendo o que vai pelo resto do mundo, as fronteiras do seu espírito coincidem com o horizonte curto dos seus olhos: a curva mansa do rio e o corte vertical da floresta. Nem alegria. Nem esperança. Esperança de quê? Liberdade, isso sim. A miséria não é afinal uma forma de liberdade? Mas para quê, se não sabem o que fazer daquela estranha liberdade das matas sem-termo e sem dono, dos rios preguiçosos que não descansam?

Frei Jacó aparece por lá, vez por outra, com as Missões: casa, batiza, absolve, reza... dá presentes, ensina catecismo. É teimoso no ensino da doutrina cristã:

- Sois cristão?

- Sim, pela graça de Deus!

- Quem é Deus?

- Um soberano Senhor, criador do Céu e da Terra.

- Deus tem sempre existido?

- Sim, porque não teve princípio nem há de ter fim...

- E para que fim nos criou Deus?

- Para amá-lo nesta vida e gozar depois d’Ele no Céu para sempre.

Frei Jacó - bom frade ingênuo, a cabeça branca, os olhos sem malícia, fica espantado com aqueles caboclos que vem do centro - meio do cerrado do seringal, do coração sombrio da mata calada. Chegam tímidos e nus. Índios mansos, tristes e miseráveis. Frei Jacó dá-lhes roupas e calçados, além de terços e santos. Impõe uma condição: que assistam à missa vestidos: "com roupa de ver Deus".

Concordam, com um aceno de cabeça. Vestem a roupa, calçam os sapatos - e endomingados, manquejando, os sapatos machucando os pés grossos, vão para a igreja. Mal terminada a missa - na própria calçada da igreja - descalçam os sapatos - ufa! que alívio! - e despem as roupas - Eta calor brabo! Depois atravessam dignamente a praça, nus, com a mais grave naturalidade, e voltam para suas malocas, contentes e tranqüilos.

Frei Jacó benzia-se, perplexo:

- Não compreendo...

Que andassem descalços, concordava. Mas, nus, Senhor Deus, que indecência!

Não compreendia... Houve nova combinação: que fôssem à igreja descalços, mas não tirassem depois as roupas.

Eles aceitam a concessão: vão à igreja de pés no chão; mas vestidos - que sacrifício! - Acabam aceitando a imposição de Frei Jacó - não há outro jeito - pra ganhar presentes.

Se na igreja aparece uma moça pintada e bem vestida - saia de chita florida, fita vermelha no cabelo - os índios viram a cabeça, curiosos - puranga! - e Frei Jacó faz um sermão iracundo, "contra essas pessoas sem modéstia que vão à casa de Deus indecentemente vestidas, para dar maus exemplos". "Que Deus se apiede dos pecadores que assim procedem!"

Os índios não entendem patavina do que ele diz. Nem a moça de fita vermelha no cabelo. É mulher-dama, mas de uma inocência de arcanjo: peca sem saber que peca, com a naturalidade boa do instinto! Axi! e isso é pecado?

Depois da missa, ou da novena, pulam todos pra dentro da montaria - levando o que foi possível trocar por borracha, balata, pupunha, pacovão, que haviam trazido do centro: - querosene, sal, farinha, cachaça, brotes, fazendas, agulhas e linha - e lá vão.

No confessionário, uma vez Frei Jacó ficou revoltado com o cinismo de um caboclo que tinha trocado de mulher:

- Uai, Seu Vigário, mudar, mesmo pra pior, é bom!

Eles afinal tinham lá a sua filosofia.

Uma vez a filha do cearense Macário adoeceu e lá chamaram o médico do Posto de Saúde. Quando o Dr. Bento quis examinar a cunhatã, ela resistiu envergonhada num inesperado acesso de pudor.

E o pai aconselhou, gravemente:

- Besteira, menina. Deixa disso, que olho de médico é que nem ouvido de padre...

Mas se a doença era na mulher, ele pensava diferente. Quando o Dr. Bento, chamado para examinar-lhe a mulher, quis levantar-lhe a saia e apalpar-lhe a barriga, ele o advertiu sem dissimular o tom de ameaça:

- Doutô, muié minha só tem doença daqui pra riba!

E marcou com a mão a cicatriz do umbigo.

Anastácio, cearense de voz mansa, era a única pessoa próspera do lugar e tinha ganho uma bolada no seringal. A conselho de amigos foi à praça botar o dinheiro no banco. Tinha feito uma só compra: um relógio. Achava bonito com correntão de ouro, mas não sabia ver as horas. Um amigo perguntou-lhe:

- Que horas são, compadre?

Encostou o relógio no ouvido e respondeu sem embatucar:

- A hora eu não sei. Mas o pau tá comendo...

De tarde vai ao banco, assina penosamente um cheque no valor de todo o dinheiro de manhã depositado. O pagador conta o dinheiro - e ele olha, atento e calado.

No fim, quando o empregado lhe entrega o cobre, Anastácio explica com a maior simplicidade:

- Não quero não, senhor! Eu queria só era ver se o meu dinheiro estava aí mesmo.

Mas um dia houve na bodega da vila um estrupício ¾ e o cearense explicou o "causo" com natural tranqüilidade:

- Eu estava no meu canto queto. Tomando minha cerveja. Tava com dinheiro no bolso. Veio o cabo - e eu só vendo o jeito dele - começou a botar gente pra fora. - Sai, cambada safada! - E eu queto. Só vendo o jeito dele. Eu tava com a minha quicé no quarto. Ele veio em direitura pra minha banda e me intimou:

- Pra fora!

E eu respondi em cima da bucha:

- O senhor é autoridade, mas não está com a razão. Eu não estou fazendo mal a ninguém.

Aí o cabo cresceu pra mim, de chanfalho em punho, e tentou me tocar. Neguei o corpo, e meti a faca nele. O senhor vê? Eu não tive culpa. Depois, nós acertamos as contas. Conversando é que a gente se entende. Não é verdade, meu branco? O senhor sabe, isto aqui está ficando muito ruim. Quero ir pra minha terra. O senhor sabe: eu sei trabalhar. E homem não faz pouco de mim... Não tenho medo de careta, nem levo desafora pra casa.

Carregaram o cabo pro Posto de Saúde e chamaram o doutor pra tratar dele: estava se esvaindo em sangue.

O cearense, sem se afobar, no meio da confusão, safou-se de mansinho. Foi-se embora, como se a coisa não fosse com ele. Mais que depressa, pulou pra dentro da montaria - e mupicando o jacumã, desapareceu na forquilha do igarapé...

Quando a noite sem estrelas sepultou a paisagem triste, o silêncio retornou ao Largo da Matriz.

E Frei Jacó continuou a ensinar catecismo e a dar roupas aos índios: duas inutilidades inofensivas.

- Não matarás! era a lição do Evangelho.

Mas com o cearense nunca mais ninguém tirou prosa: ele não matou nenhum cristão, defendeu o seu direito...

(A mata submersa, 1960)


* Jornalista, médico, contista e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.

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