O Dostoiéwsky
brasileiro
O
escritor alagoano Graciliano Ramos é considerado, por muitos críticos (não sem
razão), como sendo o “Dostoiéwsky brasileiro”. A exemplo do romancista russo,
transporta, para os seus romances, muito da sua experiência pessoal com a prepotência
dos detentores do poder, além do embate das paixões humanas e da luta do homem
contra a natureza.
Todavia, ao contrário do seu colega
europeu, Graciliano não cria personagens de extremos tão radicais (ou anjos ou
demônios), mas figuras mais verossímeis, de carne e osso, idênticas àquelas com
que cruzamos em nosso dia a dia, nas ruas, nos bares, nos escritórios, etc. Daí
sua literatura ser até mais atrativa, posto que não menos complexa, do que a
produzida por Dostoiéwsky.
Ambos foram vítimas da tirania e
pagaram altos preços pelo inconformismo. Graciliano Ramos, comunista convicto,
amargou a prisão, por obra e graça da ditadura de Getúlio Vargas, por um delito
que seus algozes nunca conseguiram definir com exatidão. Mas soube explorar
literariamente essa circunstância tão negativa, inspirando-se nela para
produzir verdadeira obra-prima da literatura universal, que é o livro “Memórias
do Cárcere”.
Fedor Dostoiéwsky, por seu turno,
chegou a ser condenado à morte, sob a acusação de estar ligado a um grupo
terrorista, supostamente envolvido em complô para assassinar o czar. Viveu,
inclusive, a traumatizante experiência da simulação da sua execução. As “balas”
disparadas contra ele, pelo pelotão de fuzilamento, todavia, eram de festim.
Mas o episódio deixou profundas marcas em seu espírito.
Enviado para a Sibéria, soube
transformar, no entanto, essa dura experiência num dos mais pungentes e humanos
romances, não somente da literatura russa, mas mundial. “Recordação da Casa dos
Mortos” foi traduzido para várias línguas e é um dos maiores sucessos, de
crítica e de público, de todos os tempos.
O que mais agrada o leitor de
Graciliano Ramos é a concisão do seu texto. É a parcimônia com que utiliza as
palavras, sem excessos e nem faltas, na medida exata. Suas frases são curtas,
diretas, medidas, exatas, quase “telegráficas”, sem nenhuma “gordura”, que
venha a tornar o texto prolixo e cansativo.
Esse estilo enxuto, no entanto, não
compromete a criatividade, na elaboração de personagens e de enredos, e nem tira
a força das meticulosas descrições. Pelo contrário: dá-lhes mais vigor.
Ressalta, posto que com despojamento vocabular (sua principal característica
literária), as imagens, que mais “sugere” do que descreve, geralmente toscas e
rudes, como são as pessoas e os lugares do Nordeste brasileiro, cenário das
suas obras.
O leitor, por exemplo, chega a
“sentir”, até mesmo, insuportável sede, ao ler “Vidas Secas”, tamanho se torna
seu envolvimento psicológico com o ambiente, magistralmente descrito por quem
viveu e sentiu na carne o fenômeno climático e o drama social de que trata, e
que por isso sabe, como ninguém, relatar com clareza e fidelidade, em seus
mínimos detalhes.
No conto “Insônia” – que dá título ao
livro em que essa história está inserida – Graciliano nos faz “viver”, ou
seja, “sentir na pele”, a angústia de
quem quer dormir, mas não consegue. E tudo através de sutis sugestões, com a
meticulosa, mas despojada, descrição “da pilha de pontas de cigarro a formar
uma pirâmide no cinzeiro”, “da luz exterior que incomoda”, “das cobertas que
pesam” e de outras tantas sensações, características de quem enfrenta esse
drama, raras vezes abordado com tanto realismo por qualquer outro escritor.
Experimentamos idêntica sensação quando
lemos Dostoiéwsky. Este, no entanto, tem um estilo muito mais carregado,
complexo e prolixo do que o romancista alagoano. Identificamo-nos, não apenas
com os torturados personagens criados pelo escritor russo, mas, e
principalmente, com o ambiente em que eles gravitam, mesmo sendo tão diverso do
nosso.
No livro “Crime e Castigo”, por
exemplo, “sofremos” a tortura do personagem central, o estudante assassino;
“incorporamos” sua angústia de tentar calar a consciência, que “grita”
acusações pela covarde chacina que praticou; “repetimos” sua incoerente
justificativa por haver matado a indefesa e avarenta senhora, eliminada por
“não fazer falta para ninguém”, e cujo dinheiro poderia ser melhor aproveitado
por alguém “com um brilhante futuro pela frente” etc.
Na “Recordação da Casa dos Mortos”,
“vivemos” o ambiente opressivo de uma prisão da Sibéria, “tumba” onde estão
“sepultados” vivos aqueles que ousam se rebelar contra os detentores do poder
político. A sensação que Dostoiéwsky nos transmite é a de morte, posto que
social, diante da falta de perspectivas e de esperanças dos prisioneiros
encerrados nesse inóspito campo de detenção, quanto ao futuro.
Enfim, embora separados no tempo e no
espaço, nascidos e criados em países com condições, climas, culturas, histórias
e realidades tão diferentes, há algo de comum, que os identifica e aproxima. É
alguma coisa que vai muito além do mero talento (inegável) que ambos ostentam.
Sente-se, em suas obras, sobretudo o que deve ser essencial num bom romance e
que os dois têm de sobra: autenticidade.
Boa
leitura.
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Li ambos e você alinhavou com maestria a similaridade entre os dois autores, elaborando (talvez à sua revelia) uma sinopse entre as duas famosas obras, digna de nota, circunstância que talvez eu teria dificuldade em realizar. Mais um que vou guardar em meus arquivos. Parabéns, amigo!
ResponderExcluirApreciei o paralelo, muito bem feito.
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