quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A casa vazia

* Por Eugênia Fernandes

Para Farah Diba Fernandes, irmã.

O filho da casa
não nasceu nela,
mas abre no tempo
uma clara janela
e através dela
anda entre ruínas.
O que foi cancela
agora se inclina,
não em reverência,
mas com a disciplina
do que morre com
a devida paciência.
O que foi cerca
será que ainda
circula (antes que
se perca ou de uma
vez se anula) um
imaginário espaço
de cascalho e mata
onde umbu e estrume
de rês pari passu
era a inútil prata
que o filho assume?
Agora ele entra e
atravessa o terreiro,
que, meio inclinado,
(no passado venta)
é todo gretado.

Chama como de
costume (ninguém
responde), antes de
subir os degraus,
vira-se: ao longe,
cumes onde a tarde
se esconde. O primeiro
degrau foi arrancado
de lajedo. O segundo
degrau (cada passo
um certo medo) é
tronco de aroeira. O
o terceiro e último
degrau que ele pisa
dá alguma canseira,
chega à porta e avisa
e ninguém responde.

O teto está todo
no chão (avós, tias,
primos, aonde?),
as paredes se
sustentam grossas
com seu adobão.
A porta já carcomida
(as dobradiças se
desagüentam) desaba
sem uma batida.
Porém, antes de
entrar a memória
de invenção, faz
o filho da casa
tremer e hesitar
como pássaro
sem asa em
sua iniciação.

A casa é toda
mineral: o que
foi madeira se
fossilizou, o que
foi arame é mais
que ferrugem, da
telha ao contorno
do curral uma só
imagem vigorou
condensada na
ruína da paisagem.

Não esquecer que
a memória é um
riacho que desliza
como o que nas
cercanias da casa
corria e histórias
de peixes e seixos
enverniza. Envernizava.
Cai o dia. A treva
que tinge tudo faz
o filho ficar mudo
e voltar-se para
antes-antes quando
a casa era solar e
sob a sombra da
gameleira primos
e manhãs brincantes
eram o tempo sem
atuar, ignorado em
sua esteira. A infância
em cada folha,
respirava em cada
grão de gergelim,
de areia. O sol
síntese na bolha
soprada de sabão
que explode na
teia densa da
caranguejeira
que é a única alusão
ao real que nos ferra.
De sofrer esta é a
maneira mais suave
de oração. Solitário,
um novilho berra
e rompe o silêncio
sagrado ao pino do
meio-dia, a infância
ouve o chamado,
pois fome não se
remedia, senta à
mesa e se sacia
com o requinte
rústico do que
lavrada dá a terra.
Ao longe o azular
das serras. Quanto
mais se vive muito
mais se recorda.
A infância percorre
a sala sem saber o
quão é livre — no
quarto o seu sonho
acorda ao pisar
num caco que estala.
O filho retorna e
adentra na casa
vazia e sem teto,
seu olhar mais se
atenta seguindo
firme e reto —
cada cômodo é
dolorosamente
vasculhado e
absorvido, a cada
passo o tenso ruído
do assoalho sujo
e gemente, já foi
vermelho e luzidio.
Em cada cômodo
vazio o passado
faz-se presente.

O filho da casa
enxerga na treva
e através dela vaza
o tempo lendário
que o tempo leva: o
mundo em miniatura,
múltiplo e vário:
país, polis, criatura
lentamente e de vez!
"Filho, quem nos fez
É o Mestre dos contrários",
— diz uma voz oracular
vinda da treva aberta.
O filho dessa incerta
casa (apesar, apesar
de sua concretude no
ar) o próprio peito
oferta crendo que delira.
Pára, se apóia, inspira
e a voz precisa retorna:
"Filho, só pode passar
o que verdadeiro nasceu,
a ponte interminável
entre o início e o acabar
não é um trabalho seu,
a morte é imensurável
em sua máscara palpável".

Reduzido a ser só
filho da casa escura
e finda quer berrar
como o novilho, mas
não berra ainda.
Percebe na voz um
brilho que no trevor
se destaca, e num
crescendo concêntrico
vai alargando sua
luz, a treva cede,
não mais ataca, e
lenta a voz conduz
pro máximo amanhecer.
Continua ela a dizer:
"Filho, o vôo é frágil
e vento qualquer o
pode abater, mas é
do alto o seu intento
e retê-lo é deformá-lo
em letra, tela, pauta,
pensamento, há que
ilimitado amá-lo e
assim torná-lo o seu
centro como quem
ama o que lhe escapa,
mas sabe que o seu
mapa é o seu maior
contentamento".

O volume da voz
ressoa suavemente
pelo entorno. Ele, o
filho, logo imagina
uma magra vaca
que doa no curral o
seu leite morno nas
rudes manhãs meninas
onde a infância se
fartava. O sol faz
do dia um forno e o
suor sua face lava.
O filho, não mais
disperso, volta ao
quarto verso onde
ele mesmo abriu
uma janela no vazio — 
clara sim como a
casa, vária sim como
a casa, fluente como
o verbo-rio, que nada
inaugura, ele sabe,
mas antes que a
casa desabe, vale a
casa porque existiu.


* Poetisa

Nenhum comentário:

Postar um comentário