O malandro
* Por Rodolfo Viana
O malandro Benê foi ter com o
diabo. Fez um escarcéu no céu, e desceu. Lamentava não ter recolhido o prêmio
do jogo do bicho que ganhara instantes antes do fim. Pobre Benê, que morrera
antes de deixar de ser pobre! Mas o que lhe corroia a alma era ter deixado a
vida sem ter consumado sequer uma noite com uma tal beata, de olhos verdes como
o verde da Mangueira. Pois que Benê, sambista inquilino do céu, não tinha
sossego justamente onde a paz deveria reinar. Saiu na surdina, sem avisar os
arcanjos que guardam o firmamento. Foi ao inferno, onde já era esperado pelo
pai dos desgraçados.
- A que devo tua visita nestas
bandas de cá, nego Benê? – perguntou-lhe o diabo, plantando um sorriso sincero
nos lábios e antecipando um abraço quase fraterno. De relance, pareciam bons
amigos, o diabo e Benê. Como bem é sabido, o senhor das trevas é sempre um
anfitrião ímpar aos que pisam em seu solo soturno. É envolvente qual uma
mulher, se mulher não for.
- Quero voltar à terra, seu Diabo
– disse o malandro, em meio a lamúrias, e explicou que sua escola de samba
faria, em poucos dias, o último ensaio geral antes de pisar na Sapucaí. Queria
ter certeza que estava tudo pronto para a Mangueira brilhar naquele ano.
Explicou que fora criado no barracão, com passistas, letristas, toda uma
bateria competente, repique, algumas belas mulatas e cerveja. Aquilo fora sua
morada em vida: jardim, sala de estar e alcova. Nada disse sobre a tal moça,
real motivo para ascender a terra.
- Eu tenho muito apreço por ti,
nego. Minha legião e eu admirávamos teu modo de vida. E por isso, devido à
consideração que guardo a ti, farei uma proposta simples – expôs o diabo, mão esquerda posta sobre o
ombro daquele homem, olhos pregados na medalha de Nossa Senhora que Benê trazia
no peito.
- Tu deves fazer um samba para
mim. Um samba qualquer, porém sem sequer uma ponta de saudade.
Foi então que o diabo sorriu e
voltou os olhos para os do malandro, que ouvia atentamente.
- E se não for possível, seu
Diabo? Se eu não conseguir fazer um samba sem saudade?
- Então, tu ficarás aqui – disse
o diabo pausadamente, para assegurar que o malandro entendia todas as palavras.
- Para sempre, eu te terei.
Sob a medalha de Nossa Senhora e
os cordões de patuá que lhe fechavam o corpo, batia um coração destemido e
orgulhoso, o que é uma metáfora, pois corações não batem em corpos mortos. Pois
devido à falta de temor e ao orgulho, sendo este último mero resquício do ser
humano, o malandro aceitou a proposta. Soava-lhe vantajosa, até. Em vida, fora
autor de vários sambas. Não seria grande empreitada fazer ausentar-lhe a
saudade e criar letra e melodia. Ritmo e poesia nunca foram problemas. Antes de
cair na terra dos vivos, ainda ouviu o diabo advertir que, quando quisesse
deixar o mundo, deveria arrancar a medalha de Nossa Senhora do peito.
O diabo, senhor da fartura
desregrada, foi-lhe sublime. Deu a Benê feição semelhante de quando vivo: um
metro e setenta e um de ébano, mirrado e gingado, além de um chapéu e um paletó
brancos e um par de sapatos bicolor. À parte, a sorte providencial jogou tal
homem no portão central do barracão, seu sempre lar.
Benê morrera de causas naturais
para um homem como aquele, da malandragem: cirrose. Pois que entrou e logo foi
atrás de bebida. Agora, com um sorriso irônico e certo escárnio pelas
preocupações abjetas daquilo que outrora chamava de vida, embriagava-se outra
vez. Nada temia, pois morto estava. E o que há de temer um homem que amarrou
pacto com o diabo?
A folia do samba não pede
descrições mais detalhadas. E nem o negro Benê saberia pôr em palavras o
compasso do batuque, o choro do cavaco, o banjo de notas despudoradas. Nem os
adornos multicolores, o cheiro agreste de suores, o barulho das vozes. Nada se
assemelhava àquilo, nem no céu, nem no inferno.
Dentre tantas texturas, sons,
aromas e paladares, o malandro avistou, do outro lado da quadra, a bela
Beatriz. Mulher acanhada, perdida na folia vadia do samba. O que tinha de
beata, seu irmão tinha de pândego e, justamente para ficar de olho nele, Beatriz
atrevera-se a ir ao ensaio.
Em vida e carne, Benê desejara
aquela morena de olhos verdes como outro verde. Aquela que nunca cedera, apesar
das investidas do malandro. Ora apaixonado, ora libertino, Benê tentara, sem
sucessos, uma noite, um beijo, um abraço, um olhar. Uma atenção distraída, que
fosse. Tentara como se aquilo fosse uma religião, e o malandro Benê, vossa
santidade pornográfica.
Mas naquela noite, para quem
fechara acordo com o diabo, garantindo-lhe a alma em caso de rescisão contratual,
dormir com a bela Beatriz seria um mero capricho de defunto, como o era voltar
ao mundo. Pois que capricho fosse, e nisso pensava Benê ao esboçar um certo
sorriso. Deitar-se-ia com a cabrocha.
Quando a morena Beatriz avistou
Benê, ele já se aproximava. Um olhar diferente, mas sim, era ele! Disseram que
havia morrido, mas lá estava o negro Benê. Não havia como explicar a vida do
malandro, assim como não tinha razão o coração sobressaltado da donzela
Beatriz, surpresa consigo mesma pela reação fisiológica. Quiçá desejasse Benê
tanto ou mais que poderia conceber.
- Pensei que tivesse morrido,
nego. A frase saiu antes de ser processada pela cabeça.
- Morri e voltei. Estava com
vontade de te ver – respondeu Benê, com um certo sorriso e olhos semicerrados.
Beatriz achou graça, timidez e
rubor na fala do malandro. Emendou um “não brinca com essas coisas” e sorriu. A
beata estava satisfeita em rever aquele sujeito, objeto e causa de algumas
noites mal-dormidas.
Dispersou-se na multidão, a
mulher. Seus olhos, no entanto, pareciam haver encontrado morada em Benê. Beatriz não
perdeu o malandro de vista um segundo sequer. Já nem prestava atenção no irmão,
razão para sua presença no barracão. Encarava, satisfeita, o sambista, e
pensava muito em pecado e pouco em castigo, de certo. Enquanto Benê, malandro
de dom e ofício, sabia que a morena o observava, marcando seus passos no meio
da massa.
Por acaso ou obra do malandro,
Beatriz descuidou-se. Não enxergava mais o malandro. Sentiu um certo frio na
barriga. Girava a cabeça em busca de um corpo negro entre tantos outros.
- Não desespera, nega – sussurrou
uma voz rouca em seu ouvido. Era o malandro, tomando-a pelo braço. O frio
dissipou-se com o calor que aquela voz próxima ao ouvido causava. Em posse
daquela que, por aquela noite, seria sua mulher, Benê arredou pé do salão. Não
perguntou à beata onde ela gostaria de ir: os olhos da mulher diziam tudo.
Em pouco tempo, e sem que a
mulher protestasse, estavam numa construção abandonada. Seria lá que o desejo
de Benê se consumaria. Também seria lá que Beatriz descobriria o que realmente
é desejar alguém.
Entre gestos instintivos, Beatriz
murmurava seus desejos. - Eu sempre soube que te teria, nego – repetia a moça,
para espanto de Benê, que lhe interrompia as frases com beijos e mordidas. Que
desejo é esse, que não aflora em vida e se faz vivo depois da morte? - Eu
sempre soube que te teria, nego.
Benê deleitava-se com os
sussurros da beata.
Em êxtase, a bela morena,
emaranhada nos beijos, apelos e pêlos de Benê, arranhava-lhe o peito com
devoção. Tamanho era o desejo que, como em surto epiléptico (e o que é a
paixão, se não uma epilepsia?), arrancou do peito do malandro a corrente de
Nossa Senhora.
Antes de se aperceber de volta ao
inferno, Benê teve tempo de ver, mesmo que de relance, a corrente na mão da
beata. Ainda ouviu um “eu sempre soube que te teria, nego”, mas não soube ao
certo se a frase saiu do diabo ou dos lábios recém beijados da dama.
Estava no inferno, o desgraçado
Benê.
Seu regresso temporário a terra
foi inútil. Frustrado e incontido em desejos, o sambista cogitou desfazer o
pacto com o diabo. Moveria mundos para alegar que o diabo não cumpriu sua parte
no acordo. Ademais, se o diabo fosse esperto, saberia que promessas de malandro
não se cumprem. Faria um inferno do inferno, e não aceitaria estar de volta sem
ter possuído a tal beata.
- Trato é trato, nego –
adiantou-se o diabo. Como bom advogado, indeferiu o protesto do malandro. -
Tuas razões foram explícitas! Querias ver o último ensaio geral. Foi-te
concedido tal desejo, oras – objetou o diabo, pleno em sua razão legal. - E o
que tem aquela mulher? É somente uma entre tantas, e tantas possuíste para te
lamentar por uma única. Anda, prepara-te para fazer o meu samba – emendou o pai
dos amaldiçoados. Cabisbaixo, Benê concordou.
Mas o malandro não conseguiu
fazer um samba. O cavaquinho não chorava como devia, nem a letra fazia sentido.
Não havia poesia, ritmo ou rima. Tentava pensar em algo, mas os olhos da morena
Beatriz permeavam seus pensamentos, anuviando qualquer deixa de samba. O que
antes era carnaval, tornou-se Quarta-Feira de Cinzas.
- Eu não consigo – disse o
malandro. E repetiu: “Eu não consigo”.
- Mas o que acontece, nego
Benedito? Cadê aquela tua cadência? – zombou o diabo, dono de todo o escárnio.
O malandro nada respondeu. Apenas
pensava em Beatriz, a morena da Mangueira. Ele era a personificação da saudade.
Sentiu o coração, outrora vadio e no compassado do ronco da cuíca, pesar-lhe no
peito, antiga morada de Nossa Senhora. Sentia saudade, e continuou a sentir até
que o diabo tomou-lhe a eternidade. O castigo era o sentir saudades até o fim
dos tempos. E a saudade era maior quando o negro Benedito encarava os olhos do
diabo, verdes como o verde da Mangueira.
- Eu sempre soube que te teria,
nego – disse o diabo, antes de trancafiar o malandro nos confins do inferno.
Desde então, o céu ficou sem samba.
* Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário