domingo, 22 de dezembro de 2013

Uma crônica de Natal

* Por Raymundo Netto

Não sei vocês, mas eu nunca gostei do Natal. Acho uma data muito triste, deprimente, talvez por isso, um dia, decidi que só me casaria se fosse num Natal. Assim o fiz!

Nunca escondi de ninguém esse meu desânimo natalino, a vontade de fugir de festinhas de confraternização, amigos secretos, jingle bells e coisas assim. Penso que, justamente por isso, é que me acontecem coisas como a que revelarei agora para vocês.

Uma tia, semana passada, trouxe a minha casa, emprestado, um relógio de parede — com gabinete de carvalho escurecido, pêndulo dourado e umas raladurazinhas no mostrador de algarismos romanos — que pertenceu a meus avós.  Desde menino era louco por aquele relógio... Pois bem, na madrugadinha, acordei com o seu sonoro gemer de horas. Na casa pequena o som reverberava. Como parecesse não parar nunca, pensei: “Será que travou?”

Ao chegar ao corredor, o susto: uma figura esfumaçada, de olheiras sulcadas e cavanhaque revoltoso, saía da portinhola de vidro do relógio e argentava, num clarão, a sala:
— Ebenezer! Ebenezer! — berrava em tom gutural.
— Ebenezer? Está falando comigo?
— Sim, seu tolo insensível! Não lembra mais de mim? Marley, Boz Marley!
— Não, seo Boz, pode voltar para o seu relógio... Ligação errada!
Ele não me dava ouvidos, ou não os tinha, e continuava como numa cantiga de grilo:
— Ebenezer, eu sou o espírito do Natal e o levarei para conhecer o Natal do passado, do presente e do futuro. Você precisa se arrepender já, enquanto ainda há tempo, senão...

Arrependimento? Nem precisava, coleciono tantos, tantos... Mas ele não me ouvia. Enlaçou meu pescoço com as pesadas correntes que arrastava e, como por encanto, tudo em minha sala pôs-se a desaparecer: o sofá velho (este, eu nem liguei), a tevê, a cadeira de balanço e até a empoeirada árvore de natal onde, desde o ano passado, o pisca-pisca deixara de funcionar. Tudo desapareceu dando lugar a calçadas, prédios e um renque de postes: estávamos na rua!

O Natal do passado

Reconheci o Palacete de Carvalho Mota, antigo prédio da Inspetoria das Secas: era a rua General Sampaio, centro da cidade.

Percebi que, na esquina, um pequeno terreno amurado atraía várias crianças. “O que está acontecendo ali?”, perguntei ao Boz. “Você quer saber? Vamos lá, então.” —, arrastou-me.

Dali de cima, podíamos ver um senhor moreno — Antônio de Paula Barros, disse-me o Boz — suando às bicas por detrás de uma lapinha. Na verdade, era uma espécie de cidade em miniatura, toda mecanizada, onde se via um trem com rostinhos de passageiros que saiam e se escondiam rapidamente, automóveis, lavadeiras, soldados marchando, a procissão, operários numa fábrica, serenatistas ao pé de um sobrado, um cata-vento rangedor, o engenho, o carrossel e sinos de igreja a badalar numa ilusão diorâmica sustentada a fios movidos por um velho motor, enquanto um gramofone, roucamente, tocava uma antiga melodia natalina.
Dois cisnes cruzavam o espelho margeado pela areia dando a impressão de uma lagoa. Próxima, e no centro da pequena cidade feita de papelão e latas amassadas, a manjedoura do menino Jesus era alteada por uma estrela de papel. As crianças, e mesmo os curiosos pais, riam admirados até quando acontecia algum “acidente” e o pobre Barros tinha que desmanchar aquilo tudo, puxando fios, ajeitando os bonequinhos, desentalando o trem descarrilado. “Que coisa linda”..., pensava, quando senti puxar-me o pescoço: “É hora de irmos adiante, Ebenezer!”

O Natal no presente

Num piscar de olhos, saímos do centro e fomos parar num Shopping Center, o “não-lugar” de todas as cidades do mundo. O espírito não parecia tão severo quanto antes. Sentou-se embaixo de uma fonte e observava as pessoas comprando, comprando, comprando. Num canto, o trono de um Papai Noel triste — “não estaria ganhando pouco demais?” — a bater no piso com o coturno cadencioso. As pessoas entravam e saiam das lojas num corre-corre danado, indiferentes à torre de concreto que crescia, ali ao lado, por sobre um tapete de mangue. Elas conferiam listas, endividavam-se, discutiam, falavam que tinham de ir para a festa de Fulano, tinham que comprar o presente para Ciclano e tinham mais outras tantas coisas para fazer, mas, o que queriam mesmo, era largar tudo isso e assistir ao show da dupla chorosa que iria tocar no reveillon naquele hotel de luxo... “Mas com quem iriam deixar as crianças? Ah, elas atrapalhavam!”
— Já vi o bastante, e você? — sentenciava o espírito.
— Eu não sei, para mim parece tudo tão normal. Quer dar uma passadinha na praça da alimentação, não, espírito? — nem me respondeu!

O Natal no Futuro

Estávamos na praça do Ferreira, foi o que o Boz me disse, eu não a reconheci. Aliás, nem tinha mais esse nome. No meio dela, ao invés da Coluna da Hora, um imenso Jesus de fibra todo iluminado, braços abertos e olhos de martírio, girava enquanto abria a bocarra para receber as moedas que as pessoas lhe lançavam. O mais impressionante era que aquelas pessoas não tinham face, acredita? Verdade... Não tinham olhos, narizes ou bocas, e, às costas, via-se uma pronunciada chave de corda que as impulsionava, maquinalmente, a seguir em frente com suas roupas, sapatos, bolsas e cabelos iguais. A diversidade tinha ido para o espaço, assim como as árvores, os rios, lagoas, pássaros e os animais. O céu embaçava visto através de uma redoma de vidro; o piso e grama emborrachados, os jardins de plástico e alumínio. Família? Ninguém sabia o que era isso. Filhos, só de incubadeiras! Não sabiam pensar, repetiam apenas. Moravam sozinhos em lofts. Nem sei se esse povo todo estava ali ou eram apenas imagens holográficas:
— Consumismo demais, desperdício demais! Só ganância, egoísmo, vaidade, violência, exploração e muita mentira! Então, Ebenezer, você está convencido de que precisa mudar?
— Sim, espírito... Tenho que mudar e voltar a ser o Raymundo Netto novamente. Eu não sou esse tal Ebenezer, criatura! Vossa fantasmagoria se enganou feio. Quero mais ver nada, não!
— Sério? Não é o Ebenezer Scrooge? — olhou para um pedaço de papel — Homessa, não é a primeira vez, em minha divisão, que digitam o CEP errado. Secretárias! Mil perdões, foi mal!

Dizendo isso agitou os braços e, de repente, eu estava novamente em minha casa.  

De volta...

No silêncio da sala, o sol já despontava. Iria deitar-me, quando olhei para a árvore de natal apagada. Lembrei: basta apenas uma das lâmpadas do pisca-pisca queimar para que todas as outras percam a sua função. Assim como as pessoas... Devagar, troquei a pequena lâmpada, e, toda ela voltou a brilhar! Sentei para admirar a dança das coloridas piscantes que tocavam uma musiquinha parecida com a da lapinha do velho Paula Barros. Pareciam me dizer: nós não estamos sozinhos e temos que comemorar todos os nossos dias. Feliz Natal, amigos e ledores!

Texto baseado em Um Conto de Natal de Charles “Boz” Dickens (1812-1870)

* Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, e um sonhador declarado que ainda se encanta com as pessoas.
 



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