sábado, 21 de dezembro de 2013

Mundo sonhado pelo poeta

O mundo sonhado por Carlos Drummond de Andrade é fascinante, como soem ser as idealizações dos poetas. Ele traça um esboço, mesmo que impreciso, desse resgate do Éden original, na crônica “Organiza o Natal”, publicada na página 52 do seu livro “Cadeira de balanço” (Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro – 1972).  O mínimo que se pode dizer desse texto é que ele é arrebatador. O máximo... Bem, nesse caso, teríamos, sem nenhum exagero, que nos valer de todos os adjetivos positivos que existissem no mais completo dos dicionários e, ainda assim, faltariam palavras para expressar nossa admiração.

Frise-se que Drummond, em toda sua obra – poética ou não – forneceu pistas, em doses homeopáticas, do mundo em que gostaria (e que todos nós gostaríamos) de viver. Mas foi nessa crônica específica, salvo engano, que sintetizou as características básicas desse “Éden” definitivo, do qual quem nele vivesse jamais seria expulso. Não haveria novo Adão. Não existiria nova Eva. Homem algum jamais cometeria o “pecado original” da desobediência. Essa possibilidade sequer passaria, mesmo que remotamente, pela cabeça dos seus venturosos habitantes.

Esse paraíso, supondo que seja um dia conquistado pela humanidade, será caracterizado pelo amor universal, imortal, irrestrito e sempre, sempre plenamente correspondido. Não haverá, portanto, ciúmes, traições, frustrações de quaisquer espécies, mágoas e muito menos dores de cotovelo. Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas”, como o poeta enfatiza.

A luta pelo poder, que caracteriza isso que aí está e que eufemisticamente denominamos de “civilização”, será coisa do passado. Será, no máximo, a lembrança de um pesadelo que passou tão logo tenhamos acordado. Por que? Simples. Porque “governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade”.

Nesse mundo ideal não haverá ricos e nem pobres. A noção de propriedade, que envenena as relações humanas e arruína vidas, por razões diferentes, tanto de quem tem quanto de quem não possui bens, será esquecida, em benigna amnésia seletiva. (...) “Os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento”.

E como serão as artes nesse mundo ideal, já que para ter essa característica de perfeição, elas têm que ser perenes, porquanto não faltará beleza para ser exaltada por artistas inspirados? A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro. A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém”.

E as instituições oficiais, como ficarão? Bancos, repartições, aparatos judiciários, forças armadas etc.etc.etc. que papel terão? Nenhum! Simplesmente não existirão, por absoluta desnecessidade de existência. Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz”. Nesse império da solidariedade, não haverá transações comerciais. Todos terão acesso livre a tudo o que desejarem e que precisarem. “Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível”.

Não haverá mais a absurda exploração do homem pelo homem. O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor”.

Mas... esse paraíso de delícias não terá fim? Ninguém morrerá? Bem, esta parte foge da alçada do poeta, mesmo em sonhos. A extinção, todavia, não causará o terror que hoje causa. E será opcional. “A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã”. Ou seja, haverá a compreensão, sem angústias e nem desespero, de que o fim é decorrência natural do começo, como tudo no universo. Afinal, planetas, estrelas e galáxias também se extinguem completado seu ciclo.

E a quem caberá a administração do Planeta, que não mais será dividido por impérios e nações, ou por qualquer ideologia, sentimento nacional, religião etc. Todos seremos cidadãos de um único e imenso país: a Terra? Serão sociólogos, ou filósofos, ou renomados políticos? Não, não e não! “O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive”.

Pena que nada disso seja, pelo menos na atualidade, viável. Nada indica que um dia será. Pelo contrário... Mas só não é, porque o dito Homo Sapiens não “quer” que seja. Porque, dada a estupidez humana, não passa de utopia, de idealização, de delirante fantasia. Tudo isso me faz desacreditar, cada vez mais, da inteligência e racionalidade humanas. Por isso, Drummond encerra essa empolgante crônica com esse desalentado desabafo: “Ah! Seria ótimo se os sonhos do poeta se transformassem em realidade!!!”. E como seria! Mas... não é e apenas por causa do egoísmo, da maldade e da estupidez humanas, que transformam coisas tão triviais e potencialmente factíveis em absurdos, quando não em delirantes fantasias.

Boa leitura.


O Editor.

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