terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A Festa dos Tolos

* Por Rubem Alves

Dizem que o que se vai celebrar é o nascimento de um menininho, que veio ao mundo numa estrebaria, em meio às vacas, cabras e cavalos, nascido de um casal pobre que deve ter tido como ceia nada mais que uns pedaços de pão velho, leite e, talvez, um pedaço de queijo. Dizem que a contemplação desta tranqüila cena bucólica tem o poder de nos salvar da nossa loucura, devolvendo-nos o sentido das coisas essenciais. Procuro sinais desta criança, alguma tímida indicação de que ainda nos lembramos dela, porque eu também estou em busca de tranqüilidade. Mas a única coisa que encontro é a figura do Papai Noel, que trabalha sem cessar para perturbar o desejo, espicaçando as pessoas a fazer dívidas, a usar seus cartões de crédito, a comprar jóias e brinquedos eletrônicos, e a se empanturrarem de vinhos, perus e outras iguarias caras, dizendo que felicidade é isto. Se eu fosse um marciano descido à Terra, e nada soubesse dos textos sagrados, concluiria que o tal de Menino Jesus deve ter sido o inventor da gastronomia ou o rico proprietário de uma cadeia de shopping centers...

Comecei a pensar que talvez o tal Papai Noel tenha se enganado, e tenha comparecido à festa errada, pois ele se parece mais com Baco que com os personagens do presépio. Desconfiei. Afinal de contas, quem foi que o convidou? Quem lhe deu autoridade para ser o mestre de cerimônias da celebração? Donde surgiu?

Resolvi pesquisar. Fui aos textos sagrados, e nem sombra dele! Nas obras de arte tradicionais que pintam a bela cena, encontrei bichos, magos, pastores, estrelas e coros angelicais. Mas o velhinho bem-nutrido com o seu saco de brinquedos, nenhum artista o pintou. Sabiam que ele não combinava com o ambiente. Fui às enciclopédias, inclusive a Britânica, e o seu nome não aparece nem mesmo no índice. Depois de muito trabalho encontrei uma referência às suas origens apenas na Encyclopaedia of Religion and Ethics, de James Hastings (editor). E o que li me fascinou.

Tudo começou com uma festa que os cristãos faziam,por ocasião do Natal. Parecida com um carnaval, era uma celebração mascarada que, por alguns dias, punha o mundo de cabeça para baixo. Carnaval, como todo mundo sabe, é o curto tempo quando os sonhos se transformam em realidade: a cozinheira vira princesa, o operário vira rei, o marido boi-de-carro se transforma em pirata, e o professor é jardineiro... Tudo no “faz-de-contas”. O mundo real é parado para que os desejos se revelem... Pois era isto que se fazia para celebrar o nascimento do Menino Deus, na clara percepção de que se as crianças ou Deus (o que é a mesma coisa...) tivessem poder, o mundo seria outro. Elegia-se, como mestre de cerimônias da dita festa, um bispo de faz-de-contas, que em alguns lugares recebia o título de Bispo das Crianças (episcopus puero rum)e em outros, o nome de Papa dos Tolos (papa fatuorum)Não eram bispos nem eram papas de verdade - só de brincadeira. Vestiam-se com as cores dos bispos e com as pompas de um papa e o mundo virava de cabeça para baixo.

“Coisa maluca”, dirão. Claro. E todo mundo sabia disto, tanto que deram o nome de Festa dos Tolos a esta celebração. Lembrei-me então que é justamente isto que os textos sagrados dizem de Deus, que ele é um grande, o maior dos tolos. Pois o que chamamos de sabedoria, ele chama de tolice. E o que chamamos de tolice, ele chama de sabedoria (1 Cor. 1.25-29). Haverá tolice maior que dizer que é preciso que os adultos se transformem em crianças? Deus faz o mundo andar ao contrário.

Deus é o contrário. Quem anda para a frente vai para trás, e quem anda para trás vai para a frente. No lugar dos bancos, dos quartéis e dos shopping centers, os circos...

O Papai Noel, ou Papa dos Tolos, ou Bispo das Crianças, era o palhaço que tomava as crianças pela mão e anunciava o advento de um novo mundo, criado pelo sonho. Pela sua magia as utopias invadiam as ruas. Como no carnaval...

Comecei a gostar dele, do Papai Noel: bufão bobo-da-corte. Sempre gostei dos palhaços. Kolakowski, filósofo polonês, tem opinião parecida, e sustenta a tese de que o filósofo deve ser o bobo-da-corte. Nietzsche, em suas meditações autobiográficas, diz a mesma coisa: era apenas um bufão. E foi ao ponto de escrever um poema em que confessa ser nada mais que um tolo, nada mais que um poeta... Pois não é isto que os poetas fazem, virar o mundo de cabeça para baixo?

Os adultos não compreendem. Por se levarem a sério demais, estão condenados a morrer de sua própria tolice. São como aquele rei, da estória infantil de Andersen, que gostava de roupas bonitas, e saiu nu às ruas pensando que estava vestido. E o pior é que todo mundo acreditava... Foi preciso que um menino gritasse: “O rei está pelado!” Com o grito do menino o feitiço se quebrou e o mundo explodiu numa maravilhosa gargalhada.

Percebi então que não é só o Menino Deus que desapareceu. O Papai Noel bufão desapareceu também. Porque se ele fosse o Bispo das Crianças, estaria fazendo caçoada dos adultos, e as pessoas grandes fugiriam dele, com medo que ele se risse das suas vergonhas expostas. Acho que ele foi seqüestrado. Deve estar preso em algum subterrâneo, juntamente com o Menino Deus, os bichos, os anjos, Maria e José.

Quero o Papai Noel de volta! Vocês, donos de shopping centers: onde o esconderam? Vocês, adultos, que mandam neste mundo de mentiras onde a felicidade se compra a crédito: o que fizeram com ele? Suspeito que vocês fizeram sociedade com Herodes... Por favor: tragam de volta o Papai Noel bufão! Deixem a criança divina nascer!

* Escritor, teólogo e educador, membro da Academia Campinense de Letras


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