Sujeito Zero (2)
* Por Sérgio Vilas Boas
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SEU EDMUNDO,
PAI DE ALMA, estava praticamente desacordado quando os vizinhos do bairro
Jardim Nova York o socorreram à beira do campo de várzea do Estrela Futebol
Clube no domingo anterior à posse de Little George (Bush) em seu primeiro
mandato.
- O que está
acontecendo, pessoal?
- Meu Jesus,
ele está ficando branco!
- Vou buscar o
carro.
- Tem algum
documento no bolso dele?
- Pega a chave,
Beatriz. A chave.
- Toma, enxuga
o suor com meu pano de prato.
- O coração
dele tá batendo, mãe.
- Vai pra
dentro, Nádia. Quem te chamou aqui?
- Está batendo,
mãe. Eu coloquei o ouvido. Eu escutei.
- A carteira...
Ah, achei. Tem identidade e tudo.
- Dá licença,
por favor.
- Que foi?
- O carro não quer pegar.
- O que Seu
Edmundo teve, Vicente?
- Desmaiou na
hora do gol do Reizinho, com a mão no peito. Estava com falta de ar,
desacordado, e aí carreguei ele pra cá.
- Seu Edmundo,
Seu Edmundo, Acorda!
- Nádia,
teimosa, já te mandei ir pra dentro.
- Me ajuda a
colocar ele no carro, Vicente.
- O olho dele
abriu, mãe!
- Nádia!
- Eu vi, mãe.
- Pra onde?
- Pra Santa
Casa.
- Ah,
finalmente essa porcaria de motor ligou.
- Pé na tábua.
- Com Deus!
Na Santa Casa, Vicente observou a maca transportar o amigo que acabara de
sair da sala de radiografias. Rodas metálicas rangiam. Seu Edmundo lhe fez um
tímido sinal positivo com o polegar e deu um sorriso pálido. É a última
lembrança vívida que alguém deve ter guardado dele.
Em seguida atravessam-no às pressas pela porta da UTI. O coração estava
enfraquecido pelo primeiro pulmão, por sua vez fustigado pelo segundo. Os tubos
é que o enchiam de ar. Da UTI só saiu para se transformar em bits pelas mãos de
Alma e minhas, embora esta não seja propriamente uma narrativa em co-autoria.
Duas enfermeiras entraram na UTI. Foram habilidosas, rápidas e sensíveis
ao colocar a velhinha, uma certa Dona Lúcia, na cama ao lado. Dona Lúcia
testemunhou contra Seu Edmundo. Alheia às perguntas das enfermeiras, ela denunciou
com voz derrapante:
- Tá chorando,
coitado.
Aí sim, as enfermeiras notam que o sujeito
precisa de cuidados, informação, verdade, afetos. Ele nunca havia se
exposto daquela forma. Devia ser um imperativo novo. Faltou-lhe sangue nas
veias em diversas ocasiões. Não vai ser agora, portanto. No leito de uma UTI,
as máscaras se derretem como cera ao sol. O leito frio e o éter destroem
qualquer ilusão de racionalidade.
Cada uma de um lado da cama, as duas enfermeiras seguram firme as mãos
tensas de Seu Edmundo. São treinadas para confortar. A mais jovem examina a
posição da agulha injetada na veia. Verifica se o soro está descendo pelo tubo,
diz em voz alta que a pressão está normal, mesmo ninguém tendo perguntado.
Seu Edmundo viu piscarem lâmpadas que não estão piscando. Pela primeira
vez na vida estava se esforçando para lembrar o dia da semana.
- Domingo tumultuado este, hem, Ceição? (Comenta uma das enfermeiras.)
Quando as duas fazem menção de se despedir, Seu Edmundo já está sedado e
a cinco passos do paraíso. As moléculas flutuam aqui e acolá como bolhas de
sabão. Os anestésicos consomem-se com a vertigem.
Esta minibiografia às avessas, arquitetada à
base de fatos e imaginações, terá de superar as fronteiras dos gêneros. E o que
dizer das minhas próprias limitações e possibilidades? Como ghostwriter (escritor-fantasma),
não poderei resistir a uma pesquisa no maldito Google, pois o arquivo Sujeito
Zero.txt, que Alma me enviara, não passa de uma escavação memorial
tresloucada, ao que parece.
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* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas
da Vida Real (www.textovivo.com.br);
vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de
“Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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