Meu pai é demais
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Por Gustavo do Carmo
Meu pai é demais. Ele sempre esteve presente na minha vida. Sua
dedicação começou na maternidade, quando a minha mãe deu entrada para eu
nascer. Ele não largava dela e só soltou a sua mão quando ela entrou na sala de
parto. Aí ficou esperando ansioso na recepção. Foi o único momento em que ficou
ausente.
No dia que em eu saí da maternidade, foi meu pai quem me levou no colo.
Foi ele quem trocou a minha primeira fralda, ele quem fez e me deu a minha
primeira papinha. A minha mãe estava cansada. No dia seguinte (era feriado de 7
de setembro quando fui pra casa) comprou o meu primeiro carrinho de bebê.
Por falar em carrinho, ganhei muitos de brinquedo do meu pai. Alguns por
merecimento, outros por puro mimo. Ele me levava para jogar bola todos os
domingos e nunca reclamava. Me levou várias vezes ao Maracanã. Fui pela
primeira vez ao estádio aos 9 anos, mas só em jogos do Botafogo, clube para o
qual nós torcemos. Aliás, eu também torço para o Flamengo. Na verdade, eu torço
para o Flamengo mas também para o Botafogo, só para torcer junto com o meu pai.
Todas as vezes em que eu fui ao Maracanã, fui somente com o meu pai, que
também já me levou, só nós dois, uma vez ao Salão do Automóvel de São Paulo. Eu
amo carros.
Além da família que ele construiu, só deu atenção à minha avó, mãe dele,
e à minha tia mais nova, mas desta ele se afastou por uns tempos depois que ela
casou e ficou viúva. A minha tia mais velha só visitava por consideração e
gratidão. Já da irmã do meio, que junto com o marido, são meus padrinhos de
batismo, ele se afastou assim que se casou com a minha mãe. Quanto aos primos,
ele os odiava. Achava-os falsos e interesseiros. Com exceção de dois.
Voltando à minha vida: ele sempre me apoiou nos meus sonhos e minhas
ideologias. Fiz o ensino médio convencional e ele aceitou, embora desejasse que
eu fizesse curso técnico. Cursei jornalismo, embora ele preferisse que eu fosse
engenheiro. Fiz uma pós-graduação em Telejornalismo, mas ele reclamou que eu
tinha que fazer algo ligado à educação. Depois fiz uma pós em gestão da cultura
com curso de docência, mas abandonei.
Meu pai não queria muito que eu prestasse concurso público. Achava que
isso é um esquema e nunca me cobrou. Nem mesmo para economizar na luz, no
telefone, internet e TV a cabo.
Meu pai trabalhou numa empresa de ônibus. Foi bilheteiro, assistente
administrativo e chegou a gerente, mas foi rebaixado a subgerente porque deixou
de atender a um acidente porque eu estava internado com bronquite. Depois ele
mesmo pediu para voltar a ser assistente administrativo, pois o cargo o impedia
que ele se dedicasse aos filhos e à família.
Pediu demissão para abrir uma livraria em Botafogo, pois é um negócio
que ele entende e sabe que eu vou cuidar com prazer depois que ele morrer.
Mesmo com o salário baixo e o bom lucro da livraria, economizou bastante
dinheiro para comprar um apartamento na Barra da Tijuca, pois era mais barato
que na zona sul, nosso sonho de consumo. A decoração ficou por conta da minha
mãe, que contratou um decorador.
A minha mãe também sempre me apoiou na vida. E com o meu pai formava um
casal perfeito. Sempre foram apaixonados um pelo outro. Ele nunca a traiu, eles
nunca brigaram na nossa frente e dormiram juntos na cama de casal por toda a
minha vida. Mesmo mimado pelos dois, amadureci rápido, pois também souberam
educar, principalmente o meu pai. Graças ao seu apoio, à sua presença.
Infelizmente, perdemos tudo. A livraria faliu e o apartamento da Barra
precisou ser vendido. A aposentadoria do meu pai era muito pouca para
sustentá-lo. Da minha mãe também. A sorte é que eu e minha irmã nos arrumamos
na vida.
Minha irmã é engenheira química bem-sucedida e eu sou roteirista de
televisão. Comprei outro apartamento na Barra, maior do que o que a gente tinha.
Meu pai veio morar comigo, minha esposa e minhas duas filhas e minha mãe foi
morar com a minha irmã e o meu cunhado.
Meu pai sempre colocou a família em primeiro lugar, mas não deixou
nenhum patrimônio.
Minha vida seria assim se tudo o que eu contei até agora fosse verdade.
Mas é boa parte ficção, uma pequena parcela verdade e outro terço o contrário
do que aconteceu. A minha mãe foi sozinha para a maternidade porque o meu pai
só dava atenção aos amigos, parece que não queria muito que eu nascesse. Fui
gerado por um casamento em crise e desde quando eu tinha dez anos, meus pais
dormem em quartos separados.
A frase do curto parágrafo anterior é a desculpa que ele sempre usa para
justificar a sua prioridade aos negócios, aos investimentos, aos primos e à
amante que teve. O que ele me deu foi por culpa. Se tivesse priorizado a esposa
e seus filhos, teríamos poucos bens, mas eu teria crescido mais feliz.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor
de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São
Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora
Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu
blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com
é bastante freqüentado por leitores
Uma boa lição para quem acha que ajuntar coisas é o mais importante. Gostei da parte das preferências futebolísticas. No exemplo dado, o personagem foi muito mais filho do que seu pai, afinal, foi pai.
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