quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Os seres inferiores

* Por Mara Narciso

A segregação das castas é tão comum em nossa sociedade que a audácia de colocar um título como este já incomoda. “Porque ser superior é diferente de ser inferior”. Por mais que a Constituição nos agrida com seus dizeres utópicos que nos soam algo patéticos, insistindo que somos todos iguais perante a lei e a sociedade, sabemos que não há igualdade coisa nenhuma. Estamos habituados a sermos medidos da cabeça aos pés e os que andam muito chiques e sofisticados têm seus motivos e razões. Mesmo os mais desavisados sabem que as roupas, os carros, os pertences e os lugares classificam as pessoas. Dentre esses aspectos, o que mais caracteriza é a cor da pele. Gritem e esbravejem, mas em tudo a cor é avaliada. Por exemplo: vê-se uma família de negros na capa de uma revista. O que se pensa? Ao ver os negros sorridentes o que se imagina? Que bela família feliz? Ou: o que será que esses negros estão fazendo na capa de revista? A publicação está querendo fazer média com quem?

O mais cínico de todos afirmará que nem reparou que a família era negra. E então vamos para os que utilizam artigos de alto luxo, que eu nem conheço. É uma maneira clara de dizer quem ela é. Numa reportagem antiga, uma revista dizia que uma loja de luxo de São Paulo comprava vestidos nos Estados Unidos por 700 dólares e os revendia por 5 mil dólares. Ter senhoras ricaças que comprem essa coisa achando uma maravilha, tudo bem, mas o fisco não gostou foi da sonegação e não ligou a mínima para o prejuízo das madames, aparentemente enganadas por gosto e prazer.

Parece que todos no mundo estão de uniforme vestindo jeans e camisetas, mas características nada sutis demonstram de cara quem é quem, pelo diferencial quem veste o quê. Gente como eu, não reconhece as marcas, mas sabe que os acabamentos são bem diversos, assim como o tecido e o corte. E os sapatos, e as bolsas? Soube que há bolsas de dez mil reais. E o que é mais estranho é que tem gente que precisa desses artefatos. Até aí, tudo escandalosamente mal, mas compreensível e tolerável. A vaidade é o motor da economia e todos os segmentos precisam vender, para o PIB crescer.

Não estou de nenhum dos lados e nem torço por ninguém, mas quando vejo um bacana passar por cima do outro apenas por ele estar mal trajado, eu não me sinto bem, e não é por que sou boazinha, a samaritana que quer ganhar o Prêmio Nobel da Paz não. O hábito faz o monge, tenho ouvido esse adágio pelos séculos afora, mas não deveria ser bem o contrário? Quem de fato é quem imagina ser deveria sentir-se assim: como eu sou quem sou, e estou usando isto, então isto é o máximo. Mas o que se vê é: sou importante porque uso esse objeto. A pessoa só se torna algo a partir do valor de face do produto.

Por ser parda e pobre já fui muitas vezes discriminada e não escrevo isso por recalque. Sei quem eu sou e o que sou. Sinto-me bem, e não briguei tanto quanto deveria para estar numa situação melhor. Nem de longe finjo ser o que não sou e jamais me esforçarei para isso. E reclamo pouco. Porém, vamos aos fatos: estando no melhor salão de beleza da cidade, aonde só vai gente que acha que pode pagar os preços nada populares de lá, em comparação com os outros espaços, vejo uma cena de desprezo impetrada por pessoa, esta sim desprezível. Não consegui ficar indiferente, mesmo a minha educação não me permitindo uma manifestação verbal.

Eu tinha marcado para ter minhas unhas dos pés e das mãos feitas por duas profissionais via secretária e telefone. Cheguei junto com uma mulher bem vestida, branca, loira e com penteado em rabo-de-cavalo. Ao chegar ao balcão ouvi a frase:
- Mas você está cansada de saber que eu não faço as unhas com essa pessoa - e citou o nome da manicure que estava próxima - e ela humilde, em tom de submissão remendou, dirigindo-se a atendente:
- Fulana, você sabe que ela não aceita fazer unha comigo.

Todos podem escolher com quem se relacionar, se tratar, ser atendido, ou não, mas é dispensável olhar por cima do salto, arrotar arrogância, e derramando soberba humilhar a moça de profissão humilde dessa maneira. Caso ela já tenha sido mal entendida pela pessoa em questão, que lá não voltasse. O meu desconforto não serviu para nada, apenas confirmou que não somos iguais coisa nenhuma.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. De fato, Mara, esse seu episódio na manicure só ilustra o que acontece a todo momento em nosso país - um caldeirão de raças que, paradoxalmente, é tão ostensivamente racista. Parabéns pelo texto.

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    1. Obrigada pela atenção de sempre Marcelo. Em viagem, só agora pude ver seu comentário.

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