quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Memórias de um integralista

* Por Marco Albertim

Um mequetrefe de bengala sentou-se na margem do rio Capibaribe, de costas para o leito gelatinoso às cinco da tarde. Com a barba por fazer, inda que de uso antigo, ancorou o queixo no torso da mão direita apoiada na curva da bengala. A calça de linho azul escuro, paletó da mesma cor, camisa branca, uma gravata da cor da camisa, em vez de reavivarem a memória de indumentária antiga, cobriram-no de um certo bolor, feito uma decrepitude sem zelo.

Ele olhou para a fachada do sobrado onde fora a Secretaria da Segurança Pública, a mesma que abrigara os porões do DOPS. Pouco se deu conta de que o casarão restaurado perdera a feição de morada de senhor de engenho cuja vetustez fora usada para infundir terror a presos políticos. Olhou com os olhos semifendidos pelas pálpebras sanguíneas e enrugadas, a escada de madeira que dera acesso à sala do delegado chefe do DOPS. Os corrimãos paralelos, distantes um do outro, agora com um verniz lustroso, quase tiraram de sua memória a familiaridade com que suas mãos, ao subir ou descer a escada, alisavam a redondez do carvalho então gorduroso de tanto sorver os suores.

Enquanto isso, uma multidão ruidosa, multicor, despontou no começo da Avenida Conde da Boa Vista; não seguiu a ponte para ocupar a Avenida Guararapes; dobrou na esquina, para se arrastar na Rua da Aurora, na beira do rio que sob um assovio sorrateiro, desprendia respingos de miasmas cheios de promessas de saúde. A multidão, compacta, não tinha pressa; com os passos monitorados pela polícia, não tivera o percurso interrompido por balas de borracha, não respirara o veneno do gás lacrimogêneo. Só a espreita concentrada de patrulhas caminhando em fila indiana; no meio, sem que o colete escuro no busto desse conta de um par de peitos, soldadas sem fogo nos olhos serenos, curiosas na mira de moças com shorts curtos, empunhando cartazes com cartolinas escritas com tintas vermelhas, a mesma cor de suas camisas.

A memória do homem solitário interrompera o curso prenhe de saudades, pesaroso. Tirara do bolso do paletó um livro com a lombada tão puída quanto impregnada de mofo; o mofo era visto nas bordas das páginas, o livro fechado, feito fungos inertes. Ele abriu a primeira página, sopesando com as pontas dos dedos o nome do autor, o perfil de seu retrato cinzento, preto, carregando certezas de uma sociedade florida por sua economia baseada tão somente na produção agrária. O rosto de graúna de Plínio Salgado, o bigode fino, basto de negrume, encheu-o de saberes, de orgulho por ser o portador zeloso de um espécime não em extinção, mas ricamente raro. O título, O Ritmo da História, convenceu-o de que o espectro de sua presença daria legitimidade a o casarão que acomodara policiais civis em trajes de casimira, à cata de subversivos cujo colarinho na camisa tinha chumaços de gordura, das horas infindas no conluio comunista.

A multidão, àquela altura percebida com a sonoridade ruidosa dos carros de som, cobriu a entrada da Rua do Riachuelo. Impossível não notar o grito de moças cujo suor era o indício da adesão à luta de classes. O homem não se assustou. A seu lado, a estátua de ferro de Manoel Bandeira deu fôlego novo a sua cultuada verve literária. Levantou-se, ficou em cima do jardim na margem do rio. Repôs o livro no bolso do paletó. Lívido, enxergou nos moços em desalinho a chance de lhes acudir recitando o que tinha de memória da Oração aos Moços, de Gustavo Barroso.

Quando metade da multidão já passara pelo pregador solitário, um monte de papéis picados cobriu-o de cima a baixo; atirado por moços em cima de um carro de som, da altura de um trio elétrico. Saudaram-no no que supunham se tratar de uma oração de apoio às demandas por mudanças sociais. O homem estremeceu as sobrancelhas, supondo que eram confetes que lhe jogavam, confetes para colorir a inteireza da oração integralista.

Ele não foi capaz de, sozinho, descer do púlpito improvisado; foi acudido por uma policial de uma das patrulhas. As patrulhas também identificaram no velho um manifestante febril, emocionado. Ao final, quando a última leva de manifestantes passou em frente ao casarão, o homem atravessou a rua. Entrou, subiu a escada rumo a uma sala já conhecida de sua memória. Deparou com uma moça com brincos de ouro nas orelhas. O penteado, inda que não o mesmo das auxiliares de polícia com quem trocara conversas, ostentava a nova roupagem da Secretaria de Segurança.
- Quero falar com doutor Moacir Sales, o chefe do DOPS. Ele está? – inquiriu ele à moça. Com um brilho de moço nos olhos velhos.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.



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