“O filho
renegado de Deus”
* Por Maria Inês Nassif
Jimeralto é “O filho renegado de Deus”, o
personagem atormentado que se mistura com o narrador preciso da miséria humana.
Por meio dele, Urariano Mota percorre com singular habilidade vidas que se
expõem a todos, sem qualquer privacidade, em 10 casinhas que se amontoam num
beco, no Recife dos anos 50. O adulto Jimeralto narra seu mundo da infância em
2012, num acerto de contas com um passado profundamente ofendido pelo
preconceito. Por esse mundo trafegam homens embrutecidos – antes pelo
preconceito do que pela pobreza – e mulheres brutalizadas por seus homens. Ou
homens que também se deixaram enternecer por mulheres.
Mas, antes de tudo, os personagens são a mãe, que
apenas poderia se chamar Maria, tal a candura e a carência, e o pai, Filadelfo.
A mãe que abdica dos prazeres da vida, do sexo, do amor, num casamento pobre
como o dela, desalentador como sua vida; mas a Maria que, mesmo falecida quando
o filho tinha oito anos, aos 29 anos, é a mesma que abriu a ele as primeiras
visões do prazer sexual: o seio farto que o amamentou até menino; as carícias
de mãe, inocentes, que ainda assim deram vida ao seu sexo ainda pequeno, quando
isso apenas era um prenúncio de prazeres adultos.
O pai, insensível, fecha-se na dureza de sua alma:
priva do amor a mulher e o filho, compensa sua origem de neto de escrava com putas louras, castiga, é vítima e
alimenta preconceitos. Mas, ao mesmo tempo, tem visões e recebe reprimendas do
padrinho morto. “O que você fez de sua vida, menino?”, pergunta a visão.
Urariano, na sua narrativa, estabelece uma linha
tênue entre o amor sublime e o desejo, entre o afeto e o sexo. Às vezes, o sexo
substitui o amor sublime, como no caso da vizinha Esmeralda, uma ninfomaníaca
que acaba trazendo o conhecimento do prazer sexual à vida das crianças do beco,
pouco protegidas pelas paredes finas e pelos cômodos reduzidos de suas casas,
que se empilhavam com as de seus vizinhos. Às vezes, o amor se confunde com o
sexo, como na ligação de Maria com o irmão gêmeo, homossexual. Maria é
apaixonada pelo irmão, conclui Jimeralto. Embora o sexo seja uma
impossibilidade, ela o ama porque ele é o homem da sua vida que é igual a ela.
Não é a autoridade que se impõe pela força. É a possibilidade da conversa, da
gargalhada, do sorriso. E é o seu amor porque as pessoas têm uma necessidade
irrefreável de amar, diz o autor.
“Ama-se um gato, ama-se um cachorro, um papagaio,
uma flor que ninguém quer ou vê. Talvez esse amor que deriva e vaga por objetos
e coisas que não respondem, ou respondem abaixo da fome de amar, talvez sejam
os sintomas do afeto que procura no mundo um indivíduo que lhe responda. Ou,
quem sabe, o amor elástico, amplo e plástico onde tudo cabe”.
Urariano Mota faz o percurso de volta, da maturidade
à infância, na vida de um ex-preso político, mergulhando o leitor numa rara
riqueza de personagens e sentimentos, profundos e contraditórios. O amor e o
ódio são um dado na vida de Jimeralto, mas ambos são sentimentos profundos, com
os quais o personagem tem de lidar. O acerto de contas acontece em torno do
caixão da mãe – em cenas oníricas onde ele, Jimeralto, reconstitui o amor que
nutre por uma Maria que morreu quando ele tinha oito anos, e da qual pouco se
lembra até que refaz essa trajetória; e o pai estampa o amor que nutre pela
mulher morta, enterrada com um filho frustrado na barriga, em crises de
arrependimento.
Urariano Mota, autor de “Soledad no Recife”, mantém
a centralidade da figura feminina, como no seu romance anterior. Maria e
Soledad são fortes e ternas. A coragem e a ternura mais uma vez se unem como
qualidades femininas acossadas pelo desprezo de companheiros frios. Maria e
Soledad, todavia, sabem amar “aquele amor elástico, amplo e plástico, onde tudo
cabe”.
(Publicado
no Vi o Mundo, http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/maria-ines-nassif-escreve-sobre-o-novo-livro-de-urariano-mota.html
)
* A escritora e jornalista Maria Inês Nassif foi colunista do Valor Econômico, editora da Carta Maior e assessora do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No momento, edita o jornal GGN, o jornal de todos os brasis.
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