quarta-feira, 10 de julho de 2013

Vizinho megalomaníaco

* Por Mara Narciso

Rico de espírito e por isso interessante o vizinho que mora do meu lado direito, o lado norte, em relação à direção indicada pela rosa-dos-ventos. Na sua casa de dois andares, que fica na esquina, e é toda amarela marfim, tem lá no topo umas peças que são placas de receptores solares. Custaram caro, e como a nossa água de Montes Claros é muito calcária, vive dando problemas. A insolação daqui é pra ninguém botar defeito, pois, sem exagero, deve ter sol por cerca de 300 dias por ano. Ainda assim, por via das dúvidas, meu vizinho tem uma duchinha elétrica de reserva para algum dia em que “invernar”, que é como se chama chover mais de dois dias seguidos por aqui. Nunca liga o artefato, e a conta de luz, como dizemos aqui, é baixa. Há uma cisterna no jardim, cuja água é usada para molhar o razoavelmente extenso gramado. A água do banho, através de um sistema coletor, é reaproveitada numa hortinha orgânica que enfeita a varanda do fundo. Na da frente tem muitas flores regionais.

O projeto arquitetônico foi feito para o aproveitamento total das correntes de vento e da luz natural. Lá é claro e fresco, embora o clima seja quente. Meu vizinho gosta de animais e cria três cachorros, sendo dois adotados. Os latidos incomodam pouco, e o arrastar de recipiente de comida logo de manhã é tolerável. Quando a gente pergunta o critério que ele usou na escolha dos animais, disse que foram dois: o que olhasse pra ele primeiro e o mais feio. Comem ração comum para cães. São magros, e passeiam com o dono, de bom peso, todos os dias pelo bairro. Ele não gosta de sair sozinho no carro, e, senso assim, teima, no meio do nosso trânsito, já razoavelmente perigoso, a ir trabalhar de bicicleta. Quando vai de carro, dá carona aos vizinhos.

Caso faça alguma obra de reforma, sem mais nem menos vai batendo na porta da vizinhança avisando o que vai acontecer e em que horário, e por quantos dias o transtorno atormentará seus pares. Tudo planejado e protegido, sendo aquele chato que parece até marcar a hora do cachorro latir. Obra acabada lava toda a parte externa e não deixa pó nem resto de massa sobre nenhum cantinho do asfalto. Tudo novinho em folha, sem resíduos.

Tem uma lista de prestadores de serviço no quarteirão e checa tudo. No final, muitos serviços são feitos por preços justos e de forma segura, pelos mesmos profissionais. Quase todo prestador fica conhecido, como numa família. Isso aumenta a segurança. Sem contar que entrosa os vizinhos, de forma que quando um viaja, pelo menos algum outro fica sabendo, e, em vista de qualquer barulho diferente é acionada a polícia. Tudo da cabeça dele. E a polícia aprova, tanto que chegou a ampliar a rede.

Meu vizinho nem povoou e nem despovoou a Terra. Teve dois filhos, dois meninos, pois ter um casal também já seria demais. O planeta, não se altera, mas ele, há cinco anos só faz compras levando suas próprias sacolas retornáveis, e garante que não dá trabalho algum ter tais sacolas em casa e no carro. Tem tamanho sentimento de grandeza, devido a isso, que uma vez, ou melhor, na primeira vez que fez isso se sentiu poderoso. Quase um semideus. Acreditável!

Uma embalagem de óleo de cozinha, numa família de cinco pessoas - ele tem empregada -, dura duas semanas, ocasião em que é levada para um serviço de coleta para fazer sabão. Já imaginou o trabalhão que dá um deslocamento desses? Mas meu vizinho não acha nada difícil. Faz um rodízio com outros interessados. Parece que tudo para ele é descomplicado. O homem é chato demais. Mantém a casa em perfeita ordem e boa manutenção. O passeio é varrido diariamente, e se nasce capim, providencia capinar.

A frescura do meu vizinho chega ao ponto de ele parar na rua para recolher lixo que alguém jogou. Da janela do seu carro, jamais, em tempo algum voou um mísero papel de bala. Os filhos reclamam do exagero, mas seguem o pai, e quando fazem passeios ecológicos, e são frequentes, deixam pegadas, tiram fotos e levam muita emoção. E não raro, voltam com grandes sacos de lixo lotados para o carro.

Faz coleta seletiva de lixo. Não é vegetariano, pois toma iogurte e come peixe. Os meninos comem “porcarias”, devido à insistência, mas duas a três vezes por mês apenas, o recorde positivo da rua. Todos na casa praticam esporte, amam a natureza e são bem-humorados. A perfeição acaba aí. O meu vizinho tem uns poucos hábitos abomináveis, como fumar charuto cubano de vez em quando, me parece, e me contou que também gosta de roer pequi (eu já tinha sentido o cheiro duas vezes). Trabalha na agricultura alternativa e segredou-me que participou da manifestação cívica por uma cidade melhor. Eu não duvidei.

Só andei descrente se essa pessoa existia mesmo ou se era um personagem ficcional, algum Frankenstein em que se colaram partes de várias pessoas do bem. Mas descobri que é de verdade. Caso outros o copiassem, aporrinhariam menos o planeta e bem mais ao prefeito. Seus vizinhos agradecem.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

2 comentários:

  1. Excelente texto, Mara, como, aliás, são todos os que você escreve. Sua crônica fez-me lembrar de um vizinho, não propriamente megalomaníaco, mas que era, no mínimo, excêntrico, para não dizer maluco. Uma de suas excentricidades era a de declamar, em latim, e em tom pomposo, poemas do romano Horácio, para o seu cão de estimação (não sei identificar de que raça era, só me lembro que era enorme e parecia um bezerro). E isso não era esporádico, ocasional, mas diário. Foi por causa dele que me interessei por escritores da Roma antiga. Pensando bem, isso que ele fazia não deixava de ser uma espécie de megalomania intelectual, não é mesmo? Parabéns, Mara, por mais esta crônica deliciosa e um enorme abraço!

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    1. O meu vizinho ficou muito caricato, a ponto de duvidarmos da possibilidade de existir alguém tão maníaco. Na verdade fiz um mix para dar maior coerência a pessoa. Obrigada pelo elogio, Pedro.

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