Conversa íntima
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Por Evelyne Furtado
"Uma
parte de mim
pesa,
pondera:
outra
parte
delira." *
-
Pare e escute o mar. Lembre-se que o som das ondas quebrando lhe acalma.
-
Tá louca? Como vou ouvir o mar daqui?
-
Antigamente se ouvia.
-
Eu soube disso, mas naquela época não havia tantas construções, nem tantos sons
separando as pessoas do mar.
-
É verdade, mas o vento...
-
O vento eu sinto. Ele está agorinha aqui fazendo festa no meu cabelo.
-
Festa? Ele está lhe deixando mais assanhada ainda.
-
Quer parar? Só falta dizer que engordei.
-
E não engordou?
-
Sim, mas não preciso que me digam. Já me basta o desconforto das roupas
apertadas. Você queria o quê diante de tanta festa de um mês para cá?
-
Calma. Só estou querendo lhe ajudar.
-
Me ajudar? Onde você aprendeu que chamar alguém de assanhada e gorda é ajuda?
-
É o que todo mundo diz. Aliás, a mídia grita que as mulheres devem ser magras e
acabar com os cachos.
-
Então a minha briga é com o mundo todo hoje.
-
Prefere brigar?
-
Às vezes é preciso brigar contra os padrões. Eu costumo lutar muito antes de
ceder a certas imposições.
-
Então não reclame.
-
Reclamo na hora que quiser, tá certo?
-
Mas, você precisa se acalmar.
-
Preciso sim, mas antes tenho que pensar.
-
Você pensa demais.
-
Penso mesmo e daí?
-
Daí é que você pensa na hora errada.
-
Você disse a primeira coisa aproveitável na noite. Eu penso muito antes ou
depois. Não penso na hora de decidir.
-
Tá vendo? Eu lhe conheço.
-
Claro que você me conhece. Você é parte de mim.
-
E você vive brigando comigo...
-
É. Temos uma convivência íntima e complexa.
-
Complexa, não. Tumultuada. Você parece me detestar.
-
Não. Eu não lhe detesto. O que eu detesto é essa sua mania de se meter na minha
vida.
-
Mas eu sou você!
-
Você é minha carcereira. Você quer me amordaçar, me prender, me enquadrar. E eu
odeio quem tenta me dominar.
-
Ah, é? E se eu tivesse me omitido onde você iria parar com suas idéias
românticas e libertárias?
-
Agora senti até piedade de você. Dei muito trabalho. Fui indisciplinada e
afoita.
-
Sem falar desse coração melado que você tem e dessa mania de viver no mundo da
lua.
-
Sinto muito. Eu sofri. Você sofreu?
-
Claro que sofri é em mim que dói quando você cai.
-
Dói em mim também e muito.
-
Essa sua intensidade me assusta, por isso tento lhe conter.
-
Controle eu não suporto. Também não aguento esse seu lado superficial.
-
Eu sei. Você nem lê Caras.
-
Você é tão metida a séria e não sabe que Caras não se lê. Caras se vê. E eu não
gasto dinheiro com bobagens.
-
Ah, cadê a moça sem preconceitos e que se diverte com séries na TV?
-
Dormindo e não estou criticando ninguém, apenas dizendo que não gosto dessas
publicações.
-
Pois durma você também.
-
Eu quero dormir e sonhar.
-
Já disse para escutar o mar. Você adormecia assim quando criança.
-
Por falar nisso, viu como o mar estava lindo ontem à tarde? Descansei meus
olhos contemplando-o.
-
Vi sim. Agora me responda o motivo daquelas lágrimas que beiravam seus olhos em
meio a tanta alegria.
-
Nem me fale. Eu ainda não sei explicar e você deveria saber.
-
Desculpe, mas estava tão emocionada quanto você.
-
O vento continua aqui. Você sente?
-
Não sinto, mas o vejo balançando a rede e brincando com seus cabelos.
-
Assanhando, você quis dizer.
-
Não, eu quis dizer brincando, mesmo. Não quero lhe ver triste.
-
Jura?
-
Juro, eu ouvi aquele seu amigo dizendo que quem a conhece bem não lhe achará
feia nunca.
-
Ele é tão doce.
-
É mesmo. E como eu lhe conheço melhor do que ninguém, não vou mais falar mal de
sua aparência.
-
Só da aparência?
-
Não. Eu prometo não lhe afligir com culpas e medos, desde que você jure cuidar
de seu coração.
-Obrigada.
Eu juro!
-
Que bom, agora deita e dorme.
-
Será que terei sonhos bons?
-
Isso não é da minha competência, mas que eu saiba seus sonhos estão sendo
ótimos ultimamente.
-
Estão sim, tenho que agradecer à outra parte de mim.
-
Fico feliz por termos nos entendido. Meu trabalho é árduo, mas minha missão é
lhe proteger. A da outra parte é mais fácil, pois busca a sua felicidade sem
pensar.
-
Desculpe, por atender mais fácil aos chamados dela.
-
É natural. Acontece com a maioria das pessoas.
-
Boa noite, vou me deitar.
-
Vá e tente ouvir o mar. Eu falo com a outra para caprichar nos seus sonhos
hoje. Soube que tem alguém louco para participar. Vou me fazer de doida e
deixá-lo entrar.
-Valeu!
Vou acordar feliz e amanhã recomeço a dieta.
"Uma
parte de mim
é
permanente:
outra
parte
se
sabe de repente."
*
Emprestei versos do poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar.
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Poetisa e cronista de Natal/RN
Será que todos nós somos dois? Não é incomum falar sozinho.Deve ser que nessas horas falamos com o outro entro de nós. Adorei descansar os olhos no mar. Saudade!
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