terça-feira, 23 de julho de 2013

Serra Morena

* Por Evelyne Furtado

Os de Serra Morena lá não nasceram. Nasceram, eles, em terras outras, mas lá encontraram pouso, como se pouso tivessem as almas daqueles lá, pois todos padecem de um atroz desassossego.

São todos desvalidos de siso e expressam, tal falta, com urros, murros, silêncios ou imobilidades férreas: Pastoreiam, guerreiam, assaltam, deliram e executam tais feitos como querem ou como a loucura própria determina.

Todos carregam cruzes. Chego a pensar, sobre aqueles lá, que as dores no espírito ou no coração - como queiram vocês chamar o que dói a tal ponto de desassossegar-passaram aos músculos, às carnes, à pele e aos ossos, enfim, tudo dói por lá.

Os de Serra Morena: Cardênio, Lucinda, Teodora, Sancho, o Cura, o Barbeiro, o da Triste Figura, os poetas, os bardos, os romancistas, os amantes de hoje e de ontem e mais todos que se identificam com eles daqui ou de lá, não começaram suas sinas na dor; antes passaram todos pela sina do amor ou algo que o valha.

Sem nenhuma exceção aquelas loucuras juntas tinham em comum, além de uma inegável e suprema graça, a desilusão.

É preciso que se diga, contudo, que para se chegar ao desencanto há que se começar pelo encanto. E haja encantamento: Uns tiveram a ventura de amar e serem amados ou pelo menos acreditaram nessa espécie de condão. Outros eram crentes em capas, espadas, cavalarias, romances e salvação.

Todos perderam da realidade a noção, mas já descem a Serra por obra e graça da fé nas notícias de que ao seu pé há uma estalagem, ou venda; ou café ou castelo, onde suas histórias se cruzarão e que, nesse canto, por obra do maior visionário de todos os tempos, a vida seguirá com o fim dos desencontros, o término da loucura e a vitória da boa vontade aliada a um bocadinho de razão.

Texto inspirado em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.


* Poetisa e cronista de Natal/RN

Um comentário:

  1. Houve um tempo em que ir para Serra Morena não tinha passagem de volta. A indústria Farmacêutica quer lucro, abusa, mas resgata pessoas do outro lado da cortina e as traz de volta ao mundo da consciência, da independência e da produtividade. A loucura não é romântica, como a tuberculose já foi um dia. Boa maneira de chegar no limiar desse mundo de tanto sofrimento e discriminação. E com doçura, Evelyne.

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