quarta-feira, 10 de julho de 2013

Pelos chifres do profeta!

* Por Fernando Yanmar Narciso

Teria havido tantos profetas nos tempos bíblicos se já existissem psicotrópicos naquela época? Não sou religioso nem acredito em poderes divinos, mas mesmo eu reconheço que não há maior fonte de histórias de conflitos entre o bem e o mal, por mais subjetivos que sejam esses conceitos, que a Bíblia Sagrada. Nunca li uma página do Grande Livro, mas já li livros e vi filmes e vídeos na internet o bastante para ter um conceito básico de como a coisa funciona lá. Boa parte dela são banhos de sangue e só sabe mostrar o pior que o ser humano tem a oferecer. Se o Deus da Bíblia é mesmo esse rei sábio, justo, amoroso e tem a, digamos, combinação do cofre na palma da mão, Ele não deveria fazer com que as pessoas incondicionalmente se amassem e respeitassem umas às outras? Ele não tem poder o bastante para construir e manter a bondade em nossas almas? Aparentemente, não.

Mas o poder do Grande Livro é inegável, e as suas fábulas já foram contadas e recontadas ad nauseum por cineastas de Hollywood e afins. O megalomaníaco diretor Cecil B. Demille foi um deles. Um dos pioneiros da fábrica de sonhos, Demille rodou em 1923 talvez o primeiro blockbusterreligioso da história do cinema, Os Dez Mandamentos. Foi gasta uma quantia faraônica para a época, criando os efeitos especiais do arbusto em chamas, do pilar de fogo e da partida do Mar Vermelho, e valeu cada centavo. Tanto que, como seu último espetáculo antes de morrer, Demille resolveu fazer uma versão superdimensionada, carnavalesca e espetacular de seu próprio filme em 1956. Até hoje, Os Dez Mandamentos, estrelado por Charlton Heston, Yul Brynner, Anne Baxter e Edward G. Robinson é considerado por muitos o maior filme bíblico de todos os tempos.

A história tem início há milhares de anos no Egito, quando o faraó Ramsés I, ao tomar conhecimento de uma profecia que um primogênito hebreu se ergueria contra a escravidão na juventude e destruiria seu império, ordena que cada recém-nascido hebreu seja morto. Nesse cenário, Yochabel (Martha Scott), mãe hebréia de um recém-nascido, coloca o rebento num cesto e o larga no rio Nilo para que alguém o encontre e o crie, e, por ironia do destino (ou seria influência divina?), Bithia (Nina Foch), filha do faraó, é quem o encontra e o adota, dando-lhe o nome de Moisés.

Os anos passam, o Egito prospera à custa do sangue escravo e Moisés (Heston, no papel de sua vida) agora é um sábio e verborrágico general que disputa o trono com o irmão maquiavélico Ramsés II(Brynner, sensacional), sem dúvida um dos maiores FDPs da história do cinema. Porém, não é apenas poder que os dois disputam, mas o coração da princesa Nefretiri (Baxter, sem dúvida a maior inspiração de qualquer vilã de novela mexicana), que é louca por Moisés, apesar de já estar prometida a Ramsés se o mesmo se tornar faraó. Sarcástica, perversa e um tanto moderninha, ela é capaz de fazer qualquer coisa para ter o seu amado e ridicularizar seu futuro marido.

Devido a algumas casualidades, Moisés acaba conhecendo o escravo Josué (John Derek, um protótipo de pastor evangélico), se dá conta de que os escravos são tratados como, ââââhn... Como escravos, e começa a lutar por debaixo dos panos para que eles tenham direito a um pouco de justiça. Ramsés, seguindo um palpite de Datã (Robinson, espetacular), ambicioso alcagüete hebreu, vê aí uma oportunidade para ser o único herdeiro do trono e acusa Moisés de estar armando um complô para libertar os escravos, fazendo com que o faraó Seti (Cedric Hardwick) passe a desconfiar do filho adotivo. Mais adiante, o general acaba descobrindo sua verdadeira origem por intermédio de Nefretiri e decide se infiltrar entre os escravos, para sentir na pele o mesmo que sentem seus conterrâneos. Ao descobrir isso, o faraó dá a ele ordem de prisão, e ele acaba sendo encarcerado na mesma cela que Josué, que estava sendo açoitado por um guarda. Ele mata o feitor e ajuda Josué a fugir, mas é capturado por Ramsés, que o bane do país, forçando-o a vagar pelo deserto para sempre. À beira da morte, é salvo por beduínos e passa a viver anonimamente como pastor de ovelhas.

Quisera seu destino que Josué o resgatasse de sua vidinha pacata e o redirecionasse para a missão que lhe fora incumbida por Deus: Voltar ao Egito como Seu porta-voz, um profeta esquizofrênico e ameaçador, e obrigar Ramsés a libertar todos os hebreus, sob pena de castigar o povo egípcio com toda sorte de pestes se não o fizer. Falando nisso, se Deus é tão poderoso, por que então ele precisa de tantos porta-vozes? Se alguém assim quer que uma coisa seja feita, Ele mesmo pode fazer. Quem seria imbecil de contestar Sua vontade? Se ele quer libertar o “seu povo”, basta fazer um raio matar Ramsés e estamos conversados!

Por melhor que seja a história, as pessoas que viram o filme só se lembram dos cenários maravilhosos e dos efeitos especiais do pilar de fogo e da divisão do mar. A mesma diversão escapista proporcionada pelos filmes de super-herói de hoje. Mesmo numa tela pequena, os detalhes de cada cena são de encher os olhos. Demille fez questão de construir cada cenário em escala real. Mas, tirando os sete personagens principais, a canastrice impera no resto do elenco- Como se as pessoas fossem se importar com a atuação diante de tamanha opulência.

Assim como a clássica imagem de Cristo loiro, alto, cabeludo e de olhos azuis criada pelos renascentistas, inspirada pelas estátuas dos deuses gregos, Heston foi escolhido para o papel de Moisés porque ele tinha uma incrível semelhança com a estátua do profeta, esculpida por Michelangelo. Se figuras como ele e Cristo de fato existiram, teriam sido mais parecidos com Raul Seixas que com Hércules. Dizem que Moisés sequer era hábil com as palavras como o personagem criado por Heston. Mas um americano que se preze jamais torceria por um profeta franzino, gago e ditatorial, logo os autores trataram de fazer Moisés o mais próximo possível do John Wayne. Marketing messiânico...

Um tremendo dilema. Os hebreus estariam mais bem-servidos morrendo jovens no trabalho forçado e no açoite, ou atravessando o deserto a pé por 40 anos rumo a um lugar inexistente, sob o cajado do“heróico” Moisés? Pelo menos, enquanto escravos, eles tinham alguma certeza. Não era boa, mas tinham.

PS.: Para o caso de alguns terem se sentido ofendidos pelo título ou pelo artigo em si, é fato conhecido que, devido a um erro na tradução da bíblia anciã, Michelangelo confundiu a auréola de Moisés com chifres.

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