Adeus ao amigo
guerreiro
* Por Pedro
J. Bondaczuk
O Nick morreu. Perdi um
dos meus mais fieis, leais e constantes amigos. Pelo menos era o mais
onipresente, com o qual podia contar a qualquer momento, de dia ou à noite,
pois estava sempre ao meu redor, ao meu lado, aqui em casa ou nas viagens que
fazíamos. Adorava andar de carro e exigia ficar sempre em uma janela. A morte
não ocorreu agora. Foi há já algum tempo. Todavia, dado o vazio que me deixou
(aliás, deixou-o em toda a família), não tive coragem de tocar no assunto até
aqui. As perdas são sempre assim: traumáticas. Por isso, demandam tempo para
que sejam aceitas e absorvidas. Algumas nunca são.
Esclareço, para quem
não é meu leitor assíduo, que Nick, sobre o qual escrevi tantas vezes, era meu
cachorro de estimação. E põe estimação nisso! Viveu conosco por 14 anos. Era,
portanto, dada a convivência, considerado membro legítimo da família, com
direitos e privilégios que a maioria dos cães do mundo não tem, e sem nenhuma
responsabilidade que não a de retribuir nosso amor com irrestrita fidelidade.
Era asseado e disciplinado. Tinha seu cantinho próprio na casa, com uma cama
até bem confortável e uma espécie de banheiro para as necessidades
fisiológicas. Seu cardápio era o mais saudável possível, elaborado por seu
médico particular (no caso, seu veterinário). Adorava os banhos semanais, no
petshop, e sempre com o mesmo funcionário, pelo qual, aliás, se afeiçoou. Tinha
que ser sempre aquele. Caso fosse outro, rebelava-se e se tornava agressivo,
quase incontrolável.
Se tinha todas essas
mordomias, por que morreu? Bem, o Nick morreu de velhice. Os especialistas
dizem que cada ano de vida de um cão equivale a sete de nós, humanos. Fazendo
as contas, portanto, meu amigão morreu ao equivalente a 98 anos de idade! Foi,
como se vê, um sobrevivente. Nos últimos tempos já não enxergava direito e
vivia trombando com móveis e paredes da casa, para seu constrangimento e
irritação e para nossa preocupação. Mesmo nessa fase de declínio, Nick não
perdeu sua principal característica: valentia.
Era um cachorro (como
poderia dizer?) “temperamental”. Quando contrariado, não poupava nem mesmo a
mim, seu amigo preferido. Foram inúmeras as mordidas que levei nas vezes em que
agi de forma a desagradá-lo. O curioso é que, após me agredir, passada a
irritação, agia comigo como se nada tivesse acontecido. Pulava no meu colo,
lambia insistentemente meu rosto e me fazia muita festa, como que a pedir
desculpas. Tenho algumas cicatrizes nas mãos a comprovar seus ataques, sempre
precedidos de rosnados a me advertir que não fizesse determinadas coisas que
não gostava.
Aliás, o Nick tinha
complexo de superioridade. Era um animal pequeno – um “Toy” branquinho, que
fazia jus ao significado da palavra que designava sua raça, ou seja, “brinquedo”,
em inglês (e parecia, mesmo, um brinquedinho peludo) – mas se comportava como
feroz pitbul. Não temia e, aliás, até procurava uma boa briga. Foram
incontáveis as vezes que, ao sair a passeio comigo, desvencilhou-se da coleira
com a qual eu o conduzia, para desafiar cães quatro ou cinco vezes maiores do
que ele, em renhidos confrontos.
Em várias ocasiões tive
que socorrê-lo nessas refregas, tirando-o da bocarra de adversários enormes e malvados.
Em vez de se dar por vencido, porém, ou de mostrar um tiquinho que fosse de
gratidão, renovava as investidas, como se estivesse vencendo as batalhas. E em
nove entre dez vezes punha os grandalhões para correr, provavelmente assustados
com sua persistência ou teimosia. O Nick era assim: nunca se dava por vencido.
E alguém que ousasse ameaçar-me, ou agir de sorte a que ele interpretasse como
ameaça ao seu “protegido” (no caso, eu)!
Avançava, entre latidos e rosnados, e não havia força no mundo que
conseguisse acalmá-lo. Julgava ser o único com direito a me morder, mas só
quando entendia que eu merecia ser “corrigido”. Uma coisa tem que ser dita em
seu favor: jamais atacou meu neto mais velho, o Pedro (o João Vítor ainda não
era nascido) e, ademais, a nenhuma outra criança.
Na maior parte do
tempo, contudo, o Nick era um doce de criatura. Tinha uma espécie de relógio
infalível no cérebro. Sabia a hora exata em que eu voltava da rua, do trabalho
ou das compras e, fizesse sol ou chuva, lá estava ele, invariavelmente, no
portão a me esperar, fazendo-me festa por no mínimo meia hora. E ai de mim se
não lhe desse atenção! Olhava feio para o meu lado, rosnava e eu, que conhecia
tão bem seu temperamento e não era bobo e nem nada, prudentemente cedia e o
acarinhava. Manteve esse hábito até o dia da sua morte, já velho, lento em seus
movimentos e enxergando muito mal. E nem então perdeu seu instinto protetor. Muito
menos seu complexo de pitbul.
Ofereceram-me, dia
desses, um cãozinho parecidíssimo com o Nick quando pequeno. Relutei. Até tive
impulso de aceitá-lo, mas acabei por recusar a oferta. Ainda é muito cedo para
ao menos cogitar em substituí-lo. Pensando bem, o Nick é e sempre será
insubstituível. Duvido que haja no mundo outro “Toy” com aquele complexo de
pitbul, que tanto me divertia e não raro me exasperava. Pode ser que mais tarde
até aceite nova amizade do tipo, mas...
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Um amor do tamanho do mundo. Eu nunca tive um cachorro, e começo a pensar no quanto perdi com isso.
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