segunda-feira, 11 de maio de 2009




Morto, ele entoou os cânticos da revolução

* Por Eduardo Murta

Estranho mundo esse, o da pequena Pingo D´água. Desde que seus governantes mergulharam numa onda de megalomania e de adoração aos factóides, a cidade não é mais a mesma. Antes desacelerada, a ponto de cada morador saber nome e sobrenome da vizinhança. Por grandiloqüência, logo viraria artigo fácil em jornais, revistas e tevês. A mais alta fogueira de São João? Era lá. A mais extensa coleção de dentaduras em varal? Lá também. O touro recordista em acasalamento diário???

Daí ninguém ter espantado quando o prefeito, encerrada a missa das 11 no domingo, anunciar: eram candidatos ao leilão do corpo de Lênin. A maioria se entreolhando, sem saber ao certo se ex-jogador de futebol, ex-cantor sertanejo ou ex-ator de novelas. E se surpreendendo com um lugarejo que virara símbolo da agropecuária mundial – recordista em soja, feijão, e dono de invejável linhagem de gado – agora se curvando a ninguém menos que um ícone do comunismo.

O bate-boca se estendeu, com o clube de ruralistas e o clero conservador cuspindo impropérios, até o momento em que a platéia compreendeu letra por letra o argumento: aquilo iria trazer milhões para a cidade. Ah, bom... A turma coçou o queixo, à espera de que alguém respondesse quem pagaria por aquela aventura. Simples: os cofres públicos. Ah, melhor ainda...

As contas estavam na ponta do lápis. Vencendo a disputa, ficariam ainda mais famosos e se recuperaria o dinheiro com rapidez e sobra. O número de turistas quintuplicando, lotariam pousadas, pensões, botequins. Tudo enumerado, e os cifrões piscavam aos olhos do grupo. Foi que Pingo D´água arrematou o cadáver distinto. Para não perder a pose, na chegada armou-se o maior espetáculo de fogos já visto no continente.

Um mês, e o mausoléu que o abrigaria se desenhava imponente, rivalizando com a catedral e a arena de rodeio. Importou-se também o maquiador, um setuagenário cheirando a naftalina, cujas mãos trêmulas poucos acreditavam capaz de retocar o defunto. Não só fazia com perfeição, como punha sua imagem a rivalizar com a dele. Desgrenhado, a ponto de parecer ele o falecido.

Os efeitos surgiram antes do previsto. Noticiário em todo o canto do mundo, filas intermináveis de turistas. Prata, prata, muita prata. Mas, noutra ponta, um fenômeno peculiar e burlesco tomando força. Vejam Turíbio, latifundiário de grãos, reunindo a peãozada em praça pública, para anunciar reforma agrária no fazendão. Mesmo dia em que o colégio de elite à européia abrira inscrições gratuitas à meninada de pés descalços.

A coronelada torceu os bigodes e não poderia atribuir a ninguém menos que o próprio fantasma. O velhaco comunista, como o tachavam. Breve surgiu o plano de raptar o corpo, dar sumiço, rifá-lo aos jacarés. Antes que tudo se pusesse de pernas para o ar, porque já passava de 20 o número de caminhonetes de última geração doadas à causa de ampliação do hospital
.
Era madrugada, quando o tropel incandescente baixou rumo ao mausoléu. As tochas vistas ao longe. Topou com uma facção recém-convertida ao espírito de distribuição da riqueza, e o que se deu foi embate furioso. Vasta coleção de mortos e feridos. Sobre eles, pisando às cabeças, um inflamado ex-fazendeiro leu manifesto pregando que não se fazia revolução sem sangue. Do corpo de Lênin não se deu notícia. Mas conta-se que um grupo o resgatou e o conserva num porão, zelando por seu eterno retorno. Dia qualquer, num ponto qualquer. E há quem não durma por isso.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.


Um comentário:

  1. O herói de ontem é, hoje, artigo de especulação, pois a progressão do cinismo não perdoa. Daí, a razão desta crônica que mal disfarça a amargura de ver no varejo o que até pouco tempo era intocável. O mundo sem eixo nem autoridade derruba suas estátuas. É tempo de queda e, sobre isso, caro Murta, vc discorre aqui com maestria digna de pedestal. Parabéns.

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