segunda-feira, 18 de maio de 2009




O sol fez pose para Cleópatra

* Por Eduardo Murta

Ah, aquilo, sim, era nome de rainha. Ainda que não passasse de mera nomenclatura. Porque cheiros nobres, sedas de outras fronteiras, joias raras e roupas clássicas reinavam longe dali. A vida de Cleópatra se notabilizava mais pelas ausências que por artigos que a fizessem levitar. Um par de vestidos – o verde mostarda e o amarelo zangado –, um único conjunto de sandálias, já carcomido às laterais. E parcos perfumes em miniatura, destes de mostruário de salão de beleza.

Assim, banhava-se em gotículas contadas. E lhe doía o coração saber que aqueles odores iriam se dissipar em meio à gordura quente de pastéis e ao café coado na lanchonete do Mercado Central. O burburinho soando tão familiar, que seria capaz de cochilar entre um cliente e outro, mirando tão-somente o sonho do futuro que o pai lhe desenhara: o de princesinha que iria deslumbrar o mundo.

Até agora, se deslumbrara ela com a dureza dos acontecimentos. O barraco simples, nas barras do Pindorama, o salário minguado no início de mês, e os contos de fadas que sobravam nas telenovelas e raleavam no dia-a-dia. Se recorda neste instante das mãos paternas ajeitando-lhe os cabelos e contando de um universo que, definitivamente, não lhe fora apresentado – o das alegrias.

Menina, perdera mãe aos 7, e ficaria órfã aos 11. Seu destino imitando dramas de romance literário juvenil. Achava então uma espécie de glória pessoal ter chegado os 21, mas se cansara desta história de aprender rigorosamente pela provação. Se enfastiara disso. Queria um basta, mas não sabia exatamente por onde romper as linhas daquele círculo de giz em que fora acantoada.

Já tentara namoro. Faltara arrebatamento. Buscara religião. E viu foi se distanciar a fé. Dedicara-se aos estudos. E não fora além de repousar sobre os cadernos o peso do trabalho, das madrugadas a que se punha de pé, dos ônibus em que seguia ao feitio de retirantes. De drogas não passaria perto, porque testemunhara tantas despedidas trágicas na vizinhança. E álcool não lhe apetecia mais que uma latinha de cerveja preta aos domingos, após o macarrão com frango.

Fosse resumir, não faria rodeios: tinha uma rotina para lá de melancólica. Pensava nesse estado de desencanto, quando se deu conta do café rompendo as bordas do copo e sangrando ao balcão. Pediu desculpas ao cliente, envergonhada. Servia-lhe a segunda dose, viajando naqueles olhos soando tão doces, que fez o líquido se romper de novo. Os batimentos cardíacos em aceleração, percebeu o tremor nas mãos lhe denunciando. E o freguês lhe sorriu amabilidades.

Mesmo em meio ao desconcerto do convite, acabaram juntos naquela noite. Ele, cândido, prometendo a ela um horizonte de poesia e amor, tão próprios à telenovela. Três cervejas no bar de esquina, cruzariam a madrugada à cama. Cleópatra, pela primeira vez deitada ao lado de um homem, pediu apenas que fosse carinhoso. Confiou. E como foi bom. Viveu esperanças de princesa no colchão modesto. Dormiu se sentindo uma deusa da periferia diante da promessa dele e refém de sua inocência: “Amanhã, moldarei um sol só para você”.

Despertou buscando o corpo do galã que a encantara. Nada. Colheu unicamente um botão de camisa ao lençol, o cheiro leve de alfazema ainda vivo. E rumou para o trabalho. É esta sensação que a visita ao dosar o café para os clientes, se vigiando, a que não rompa os limites. Crendo piamente que o estranho cumprirá o acordo de voltar.

A primeira promessa, a de fazer a silhueta solar ganhar novas formas naquele setembro, se confirmara. Ao lado da multidão acompanhou o momento em que o aro da lua se interpunha à gigantesca esfera brilhante. Um círculo negro, as bordas crispadas, reluzentes. E nelas Cleópatra jurou ler ser nome. Como um milagre, então, ele haveria de retornar. Ainda que fosse para lhe dizer que artimanhas de conquistador eram tão antigas quanto a natureza dos eclipses. E que mesmo as mulheres com nomes de rainhas abririam seu coração infantilmente a esses fenômenos. Docemente servis.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.


3 comentários:

  1. História de alguém que nasceu já derrotada na competição da vida, pela vida - alguém sem chances! Mas a envergadura do texto manteve-a de pé até o final, com dignidade, embora "docemente servil". Parabéns, Murta.

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  2. Triste destino o de Cleópatra.
    Triste e belo !
    Digo belo, porque linda fica uma mulher apaixonada, mesmo que por uma ilusão ....

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  3. Seu texto está bom, como sempre, Murta. Mas a foto do seu texto está maravilhosa!!! Um
    abraço.

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