sexta-feira, 29 de maio de 2009




Dom Helder Câmara: 100 anos

* Urariano Mota

Nos 100 anos do nascimento de Dom Hélder Câmara, completados este ano, muitas homenagens surgiram. Pelo tom geral que vimos, quase fizeram dele uma nova Madre Teresa de Calcutá. Ainda que tenha nascido três antes da santa Madre Teresa, houve uma tendência de fazer de Dom Hélder uma ovelha, só mansidão e paz. Mas esta seria uma boa ocasião de rever os anos de ditadura no Brasil.

Quem foi jovem no Recife, no Brasil depois de 1964, sabe: Dom Hélder era o arcebispo vermelho, o perigoso comunista disfarçado em padre, um ilustre morto-vivo cujo nome e fotos não apareciam nos jornais, apesar de ter sido o brasileiro mais famoso no mundo, depois de Pelé. A sua prática sacerdotal, em um Recife que vinha da pedagogia de Paulo Freire, de governos socialistas, longe estava da simples pregação da caridade, ou de se mostrar superior ao povo miserável. Ao mesmo tempo, os comunistas jamais pensaram, sequer por hipótese, que o arcebispo fosse um dos seus. Havia encontros, havia diálogos entre suas políticas, com mais de um ponto de conflito.

Lembro de Dom Hélder Câmara em duas ocasiões. Na primeira delas, nos anos 70, a repressão política havia aprisionado vários auxiliares dele, poucos anos depois de haver assassinado o Padre Henrique, auxiliar direto do seu trabalho na Arquidiocese. Nessa ocasião, em que o vi pela primeira vez, pude notar um dom desse padre poucas vezes mencionado. Estávamos concentrados, reunidos em frente ao Palácio dos Manguinhos, para um protesto. Então Dom Hélder Câmara nos dirigiu uma fala. E vi, ouvi e notei: Dom Hélder era um orador, um excepcional orador. Franzino, baixinho, havia um cérebro de pensador na sua voz, um talento de ator que o fazia crescer com uma dicção a acentuar as palavras conforme o seu desejo. Ele fazia pausas no discurso, intervalos cujo único fim era imprimir o seu pensamento em nossos espíritos.

No discurso vivo de Dom Hélder havia uma chama calorosa, que os crentes e ele próprio diriam ser um fogo do Espírito Santo, que tomava conta do seu rosto, da sua expressão, de suas palavras. Com os olhos grados, sem gritar, ele comovia a todos, e para comover não recuava dos motivos mais piegas. Lembro que para falar do afeto que nos unia aos presos, da nossa comum preocupação, para ressaltar que éramos solidários, ele fez com que todos cantassem o “Como vai você?”, de Antonio Marcos, que era sucesso na voz de Roberto Carlos. Confesso que até eu cantei, com a voz embargada.

Da segunda vez, eu não o vi, mas pude ouvi-lo e percebê-lo, no rádio. Quem já leu suas crônicas, que em boa parte foram reunidas no livro “Um olhar sobre a cidade”, entenderá o que vou dizer. Para mim, ele escrevia textos modelares de crônica radiofônica. Nessas crônicas há um escritor que deveria fazer corar de vergonha muito imortal da Academia Brasileira de Letras. Nelas Dom Hélder pega um motivo, um tema de aparência distante, e traz para o seu texto, com observações poéticas e líricas, que se aplicam ao cotidiano de todos, intelectuais ou analfabetos, ateus ou cristãos. Para todos os públicos, valeria dizer. Leiam, melhor dizendo, ouçam “Flores murchas”. Vocês podem ouvir esse texto em http://www.domtotal.com/multimidia/audio_video_detalhes.php?mulId=29&mulArqId=78

Dom Helder pergunta: “O que fazer quando as flores murcham?”. E mais adiante, “Uma roseira já me perguntou se eu acredito que Deus ressuscitará também as flores...”, para concluir: “Os teólogos que me perdoem, se é teologicamente sem base o que vou dizer: eu não posso imaginar um céu sem flores”.

Todos nós, leitores ateus e ouvintes, nisso também acreditamos.

* Jornalista

4 comentários:

  1. Bravo, caro Urariano, pela lembrança-homenagem de um dos nossos maiores símbolos de resistência e combate à opressão, de um homem de máxima coragem - uma coragem que não se pode atribuir apenas à religião, pois fala-se aqui de um guerreiro muito especial. Parabéns.

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  2. Urariano, você me fez "viajar" ao final dos anos 70. Tinha um dos livros de crônicas de Dom Hélder e era sua fã ardorosa. Um dia soube que ele iria a Faculdade de Direito no Largo São Francisco. Era uma noite muito fria, não me lembro se junho ou julho. Mesmo assim,deixei tudo e fui vê-lo. E você tem razão: que orador!Conforme falava, ele se empolgava, ficava na ponta dos pés,gesticulava, e seus olhos brilhavam como os de um garoto de vinte anos.Hipnotiozava a plateia. E nunca vou esquecer: na hora de sair do palco,eu ofereci as mãos a ele, para ajudá-lo a descer do palco, que era um pouco alto. E nunca vou esquecer que naquela noite eu toquei nas mãos de um Anjo Vermelho.
    Forte abraço!

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  3. Uraniano, é sempre bom relembrar gente que vale a pena de verdade. E Dom Helder esta nessa cota especial dos que ajudam a levar flores onde quer que estejam.

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  4. Ah, que tristeza Urariano! Tem razão, essa pergunta é crucial: " O que fazer quando as flores murcham?". Dura é a convicção da transitoriedade de tudo e de todos, inclusive dos sentimentos. O que fazer quando o amor acaba? O que fazer quando uma vida se vai? Bom ver o lado humano e não tão perfeito dos notáveis. A sua glória, Urariano, foi capturar uma passagem que ninguém ouviu ou viu. Parabéns!

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