segunda-feira, 18 de maio de 2009




Madame Lu

* Por Celamar Maione

Madame Lu entra na igreja depois da missa das seis, encaminha-se para a segunda fila à esquerda e ajoelha-se lentamente. Em seguida, abre a bolsa e pega um terço, segura-o firme com as duas mãos, fecha os olhos e começa a rezar. Uma senhora aproxima-se e toca em seus braços. Ela dá um salto, mas relaxa quando a mulher mostra a sacolinha. Madame Lu pega uns trocados, coloca na sacola e volta a rezar. A igreja fica vazia e silenciosa. Quinze minutos depois, olha o relógio e perde a paciência. Resmunga alguma coisa e quando prepara-se para guardar o terço, sente duas mãos pesadas pressionando-lhe os ombros.
- Desculpe a demora. Foi o trânsito.
- Pensei que não viesse.
- Jamais. Trato é trato e seria perigoso não aparecer .
- Certamente. Trouxe a outra parte?
- Está tudo aqui. Conforme o combinado.
- Então ajoelhe-se ao meu lado.
- Pra quê? Rezar? Já tenho um lugar reservado no inferno – riu, apertando os lábios.
- Pode ser que rezando Deus o perdoe. Nunca se sabe.
- Não existe perdão para o que eu mandei fazer.
- Acredita em Deus?
- É mais fácil acreditar. Sim, acredito.
- Então porque me pediu para fazer o serviço?
- E você? Acredita em Deus?
- Nunca tive tempo para pensamentos existenciais. Sou pragmática. Muito ocupada.
- Ocupada? Eu diria que intrigante e misteriosa.
-Faz parte da minha profissão.
- Não quer jantar um dia desses comigo?
- Não me envolvo com clientes.
- Nosso contrato encerra hoje. Serviço feito e pago. Não sou mais seu cliente.
- Não misturo lazer com trabalho. Aliás, a polícia desconfia de alguma coisa?
- Me fez algumas perguntas. Mas parece convencida de que foi latrocínio.
- Vi sua foto nos jornais. Parecia um marido sinceramente desesperado, abraçado ao corpo da mulher no asfalto, clamando por justiça.
- Sou um artista. E você uma excelente profissional. Muito boa no que faz.
- É a prática. Não deixo rastro. Na cidade do Rio de Janeiro sua finada mulher já virou estatística .
- Nada como contratar uma matadora experiente. Aprendeu com quem o ofício?
- Vocação. Arrependido?
- Não. Se pudesse mataria aquela vaca gorda novamente.
- Você é um perfeito cavalheiro – disse ironicamente - Não sei quem é pior: Se sou eu ou meus clientes .
- E nós dois?
- O que tem nós dois!?
- Que tal passarmos uma noite juntos? Gostaria de saber se trepa tão bem quanto mata.
- E você acha que eu treparia com um homem que manda matar a esposa?
- Você não é minha esposa. É apenas uma paquera perigosa – riu cinicamente.
- Sou matadora e não prostituta.
- Mas é uma mulher e linda por sinal.
- Sexo despende muita energia. Gasto minha energia no trabalho.
- Não acredito que só veio ao mundo para matar . Uma mulher sensual como você?
- O cheiro da morte me excita. Preciso de adrenalina para preencher o vazio que existe em mim.
- Não acredito que seja tão perversa. Existem outras maneiras de se preencher um vazio.
- Desculpe, preciso ir. Já fiquei tempo demais aqui.
- Tem medo de se apaixonar por mim?
- Medo? Não existe essa palavra no meu dicionário. Preciso ir. Não insista.
- Não vai conferir o dinheiro?
- Confio em você.
- Não quer mesmo sair comigo?
- Não. Toma meu cartão. Se precisar dos meus serviços novamente, entre em contato.
- Você é uma metamorfose: “Cynara Pedicure. Atendo a domicílio” – leu o cartão em voz alta e segurou no braço de Madame Lu :
- Era uma cartomante e agora se transformou numa pedicure!?
- Na minha profissão é preciso mudar. Não existe rotina.
- Posso ligar amanhã?
- Amanhã viajo para outro estado. Novo cliente. A indústria da morte não pára.
- Desse jeito vou largar meu emprego e começar a matar gente.
- Se tiver vocação, pode virar meu concorrente. Dá dinheiro. Nunca passei fome.
- Você trabalha sozinha?
- Você é muito curioso. Já disse: Não me envolvo e nem dou informação a respeito da minha vida .
- É uma pena. Gostaria de conhecê-la melhor.
- Nosso contato termina aqui. Hora de partir. Sai primeiro.Ninguém pode nos ver juntos.

Madame Lu fica sozinha. Torna a pegar o terço. Coloca a pasta com o dinheiro em cima das pernas e fecha os olhos. Concentra-se durante alguns minutos. Quando vira-se pra ir embora, esbarra em Padre Antonio :
- Desculpe, Padre.
- Nossa, que moça bonita! Qual é seu nome, minha filha?
- Bárbara.
- Devota de Santa Bárbara?
- Minha mãe colocou o nome em homenagem a ela.
- Que Deus a abençoe e a conserve assim, sempre bela.
- Que assim seja, Padre!

*Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

7 comentários:

  1. Até no templo o Mal transita! E por que não, se andam juntos desde sempre como siameses? A matadora e o padre ... uma encomendando almas e o outro encaminhando-as. Parceria insuspeitável que, no entanto, não escapa à sua argúcia, Cel. Ponto no currículo. Parabéns!

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  2. Sempre surpreendente né,Celamar???
    adorei!

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  3. A psicopatia está na moda com o sucesso do livro da Dra. Ana Beatriz Silva "Mentes Perigosas". Segundo dizem, os psicopatas matam ou executam grandes maldades sem nenhuma preocupação moral, ou de pena ou culpa. São exatamente frios. A sua personagem camaleônica, até por exigência profissional é bem assim. A cada história sua Celamar, muitas emoções. Ótima!

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  4. Excelente conto , Celamar! De fato, a sociopatia está cada vez mais em evidência. Cruel realidade, mas rendeu uma ótima história! Beijos!

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  5. Sua personagem matadora rende muito mais que um conto, Celamar. 19 beijos com sabor de vida.

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  6. Celamar, sua herege! Te exconjuro, mas não resisto aos seus textos. um beijo.

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  7. Haja criatividade e tipos inusitados formando seus textos surpreendentes, Celamar! Espantasoa sua imaginação. Ótimo texto como sempre, amiga!
    Beijos e parabéns!

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