terça-feira, 12 de maio de 2009




Desvirtualizar é diferente de desvirtuar


* Mara Narciso


Quando o terceiro filho nasceu, o pai correu para contar que a criança era normal. Sendo primo-irmão da esposa, achava que a consanguinidade era responsável pelos problemas de saúde da primeira filha. Mas o menino tinha uma atrofia muscular. Os médicos disseram que morreria, e que se escapasse nunca andaria. Só que nunca é um tempo longo demais. A mãe tratou de construir cada fibra muscular com a mão, num tempo em que não existia a fisioterapia entendida como ciência.

Aconteceram cirurgias ortopédicas, e diversas estadias no Hospital Sara Kubitschek em Brasília. Compraram uma Kombi e faziam a grande viagem ficar ainda maior, pois, para não cansar o menino, muito frágil, paravam a todo instante, e praticamente acampavam pelo caminho, pois faziam comida na estrada. Foram horas intermináveis em número e tempo numa dedicação total. Uma vez, em plena estrada o menino gritou: “Pára, pára, que eu quero brincar com aquela terrinha ali”.

Aos cinco anos o menino andou. Antes era de carrinho, e a mãe não gostava quando olhavam para ele e diziam: “Coitadinho!” A mãe o criou para enfrentar o mundo, e para isso lhe deu as armas: o estudo, a segurança, e a certeza de que seria capaz.

O tempo trouxe outros problemas, pois, embora fizesse os exercícios, natação e judô, a fraqueza muscular levou a uma curva em “s” na coluna e foi preciso ser operado. Colocaram, após sessões de tração desumanas, uma haste de metal para retificar a coluna vertebral que teimava em se encurvar e impedir a respiração e a sobrevivência do adolescente, então com 16 anos.

Morou alguns anos em Belo Horizonte para se tratar. O pai foi um pioneiro em catar papelão e metais, quando ainda não havia o conceito de reciclagem. Era tudo muito caro e todos os rendimentos eram bem-vindos. Posteriormente surgiu a habilidade do rapaz fazer versos e a máquina de escrever tornou-se inseparável.

Esteve em sua terra natal onde fez a faculdade de economia e voltou à capital para trabalhar. Não se encolhia, não se escondia, e não omitia sua opinião política, sempre mais à esquerda. Largou um pouco de viver a própria vida para participar ativamente da vida dos pais e da sobrinha. Quando havia um problema era quem resolvia ou buscava ajuda.

Não é confortável ser como ele é. Há quem não o aceite. Após ficar adulto, mantém diariamente a ginástica, obrigatória para que viva, e não apenas sobreviva. Com essa invejável persistência, faz a musculação e segue a orientação de educadores físicos e fisioterapeutas permanentemente. Não quer ser exemplo, mas acaba sendo referência involuntariamente. Fez faculdade antes das cotas e passou em concurso público também por mérito.

O meu querido primo emprestou-me uma nova palavra, “desvirtualizar”, que , penso, deve ter sido criada por ele. Mendonça Júnior foi uma das primeiras pessoas que vi totalmente interessadas no mundo virtual, do qual falava com grande entusiasmo. Todas as novidades eram repassadas a mim por ele com intensa vibração.

O poeta Penninha, seu outro nome, é um economista, onde, no seu mundo, os números e os versos misturam-se de maneira concreta em poemas curtos e fortes. Agora resolveram musicá-los, e está gostoso de ouvir.

Então, Júnior sumiu da minha tela, e nem repassando PPS está. Estranhei e cobrei, já sentindo em sua resposta que a alegria tomou conta da vida dele. Perguntei: casou e mudou? “Não casei, nem mudei... só desvirtualizei um pouco... e quando entro na internet é pra ver coisas de trabalho... conversar e fazer contatos com os artistas da minha rede... trocar ideias com o Marcelo Lafetá, de Brasília/DF, que está musicando os meus poemas...” Contou ainda que está programando uma viagem para Ouro Preto, que está trazendo todos os planos para o mundo real, e fazendo uma logística para viver um grande amor.

Júnior passou a vida toda tornando possível o impossível. Para ele fazer o imaginário ficar real foi rotina. Então visitou o mundo virtual por gosto, durante anos. Agora, cansado do irreal, percorre o caminho inverso, fazendo o mundo real crescer e aparecer, evidenciando as suas virtudes, enquanto o mundo virtual aplaude e manda lembranças. Os dois mundos encontram-se nessa pessoa admirável, onde nem todos entendem o motivo dele conseguir tudo isso, ou seja, ser exatamente o que ele é: gente em alto astral.

* Médica endocrinologista há 29 anos, acadêmica do 6° Período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a hiperatividade”

6 comentários:

  1. Maravilhosa lição de vida, traduzida em texto atraente e sensível da Mara - nova colega de Literário. Parabéns, amiga.

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  2. Grande sujeito, hein! Saber erguer-se não é pra qualquer um, não. Tem que ter cabelinho nas ventas e expandir a exigüidade até, se possível, a plenitude. Parabéns, Mara, pelo primo e pela crônica: um à altura do outro.

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  3. Gostei muito, Mara. Parabéns pelas linhas que remetem à troca entre o virtual e o real.

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  4. Agradeço a Marcelo, Daniel e Urariano, pela atenção da leitura e a generosidade do comentário. Muito obrigada! Nem sempre consola, mas é bom pensar em grandes problemas quando estamos com as costas arqueadas por dores passageiras.

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  5. Que historia de vida forte, Mara. Uma lição de vida que demonstra (como vimos recentemente com Ronaldo, o Fenômeno) que só nós mesmos conhecemos nossos limites. Muito sucesso para o Júnior!

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  6. Risomar, obrigada pelo comentário. A força da luta pela sobrevivência foi tão intensa e ocupou tanta energia, que apenas depois que passou podemos avaliar a extensão que foi essa grande batalha.

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