sexta-feira, 10 de março de 2017

Sobre a inutilidade dos punhais

* Por Suzana Vargas


No que podemos chamar de tendências da poesia brasileira contemporânea cabem várias classificações e – por sorte – nenhum rótulo. O século XXI veio nos encontrar adotando uma saudável ausência de grupos específicos, uma poética democrática que produziu novas formas de ser e de estar para a poesia com o advento das mídias e recursos audiovisuais permitindo aos artífices do verso brincar com a palavra e suas possibilidades. Temos os já incorporados poemas visuais, concretos, funcionais, espaciais pois. Temos, ainda – os poemas que nascem do rap grudados aos seus ritmos com significados trepidantes, dançáveis, audíveis, dramatizáveis. A poesia feita para o palco, coletiva, atualizada em quadrinhos e tantas formas de expressão.

É nesse contexto em que o poema aparentemente demitiu o inefável e que o sublime assume outras roupagens que Punhal Inútil, primeiro livro de Francisco César Manhães se apresenta. E se apresenta retomando uma poética apolínea, tendente à metalinguagem e à reflexão numa linhagem cabralina de contornos novos. João Cabral passeia por aqui, mas travestido de filósofo, linguista, sociólogo, com ritmos flutuantes e rimas impensáveis.

O livro vem dividido em quatro partes (As palavras e as coisas/Gênesis/Troias/A morte e a moça) e o texto que introduz o leitor no universo do Punhal já o adverte que poemas são escritos numa tentativa de decifração do nosso cotidiano, essa avis rara que só desavisadamente pensamos repetir-se. Trata-se de ave inventada, única, plena de luz e sombra, tristemente perdida sem ter sido encontrada (sic) que não abandona a vida dando-lhe contornos de eternidade. E nesse rol de eventos existências, entram, claro, a felicidade, a morte, o amor traduzidos nos seus elementos naturais: beijo, pássaros, palavras antigas que a poesia dá conta de reinventar:

…O mundo me entra pelos olhos
e me sai pela boca
Invento palavras cada dia
sobretudo as mais antigas.

Pois bem: é nesse universo de invenções e renascimentos que o poeta se apresenta com poemas curtos, enxutos, utilizando-se de técnica quase fotográfica para compor um mural contemporâneo de difícil síntese. Como ele mesmo nos diz, reproduz com exatidão nossa eterna sensação de deslocamento e eternidade.

Portanto, caro leitor, este é um livro para degustar com vagar, exige substância de leitura, tempo para decifração, em que pese seus motivos estejam ao alcance da nossa mão e da nossa vista. O poeta sabe pegar com sua cota de dor e de ´pasmo os contrabandos, nessa aduana de afetos que somente a poesia consegue traduzir em palavras. Com ciência de mestre, com consciência de pensador – traço raro na produção contemporânea. Como ele mesmo nos diz em parte do poema Corpus:

(…) Algo mais haverá, não
em mim, que me deixo
mas nos outros eus
em que permaneço.

Escrever poesia, além de multiplicar nossas vozes é dirigir-se a todos e a cada um, em particular. Por isso, caro leitor, certamente esse punhal lhe será útil como só a poesia que não serve para nada, sabe ser.

* Suzana Vargas é escritora, professora de Literatura, mestre em Teoria Literária pela UFRJ, criadora e diretora da Estação das Letras, no Rio de Janeiro



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