Sobre a inutilidade dos punhais
* Por
Suzana Vargas
No que podemos chamar
de tendências da poesia brasileira contemporânea cabem várias classificações e
– por sorte – nenhum rótulo. O século XXI veio nos encontrar adotando uma
saudável ausência de grupos específicos, uma poética democrática que produziu
novas formas de ser e de estar para a poesia com o advento das mídias e
recursos audiovisuais permitindo aos artífices do verso brincar com a palavra e
suas possibilidades. Temos os já incorporados poemas visuais, concretos,
funcionais, espaciais pois. Temos, ainda – os poemas que nascem do rap grudados
aos seus ritmos com significados trepidantes, dançáveis, audíveis,
dramatizáveis. A poesia feita para o palco, coletiva, atualizada em quadrinhos
e tantas formas de expressão.
É nesse contexto em
que o poema aparentemente demitiu o inefável e que o sublime assume outras
roupagens que Punhal Inútil, primeiro livro de Francisco César Manhães se
apresenta. E se apresenta retomando uma poética apolínea, tendente à
metalinguagem e à reflexão numa linhagem cabralina de contornos novos. João
Cabral passeia por aqui, mas travestido de filósofo, linguista, sociólogo, com
ritmos flutuantes e rimas impensáveis.
O livro vem dividido
em quatro partes (As palavras e as coisas/Gênesis/Troias/A morte e a moça) e o
texto que introduz o leitor no universo do Punhal já o adverte que poemas são
escritos numa tentativa de decifração do nosso cotidiano, essa avis rara que só
desavisadamente pensamos repetir-se. Trata-se de ave inventada, única, plena de
luz e sombra, tristemente perdida sem ter sido encontrada (sic) que não
abandona a vida dando-lhe contornos de eternidade. E nesse rol de eventos
existências, entram, claro, a felicidade, a morte, o amor traduzidos nos seus
elementos naturais: beijo, pássaros, palavras antigas que a poesia dá conta de
reinventar:
…O mundo me entra
pelos olhos
e me sai pela boca
Invento palavras cada
dia
sobretudo as mais
antigas.
Pois bem: é nesse
universo de invenções e renascimentos que o poeta se apresenta com poemas
curtos, enxutos, utilizando-se de técnica quase fotográfica para compor um
mural contemporâneo de difícil síntese. Como ele mesmo nos diz, reproduz com
exatidão nossa eterna sensação de deslocamento e eternidade.
Portanto, caro leitor,
este é um livro para degustar com vagar, exige substância de leitura, tempo
para decifração, em que pese seus motivos estejam ao alcance da nossa mão e da
nossa vista. O poeta sabe pegar com sua cota de dor e de ´pasmo os
contrabandos, nessa aduana de afetos que somente a poesia consegue traduzir em
palavras. Com ciência de mestre, com consciência de pensador – traço raro na
produção contemporânea. Como ele mesmo nos diz em parte do poema Corpus:
(…) Algo mais haverá,
não
em mim, que me deixo
mas nos outros eus
em que permaneço.
Escrever poesia, além
de multiplicar nossas vozes é dirigir-se a todos e a cada um, em particular.
Por isso, caro leitor, certamente esse punhal lhe será útil como só a poesia
que não serve para nada, sabe ser.
*
Suzana Vargas é escritora, professora de Literatura, mestre em Teoria Literária
pela UFRJ, criadora e diretora da Estação das Letras, no Rio de Janeiro
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