domingo, 5 de março de 2017

Risco na noite


* Por Marcos Alves


As corujas voavam pela copa escura das árvores. Não significavam nada em si, mas davam um calafrio na espinha. De repente, um barulho na moita. O bicho se mexe, alvoroça o mato.  

"Pode ser um tatu!" – diz Tião, camarada com experiência na roça. "Tem a carne boa demais da conta, hein 'seu' Elson?", pergunta ele ao meu tio – eu com a bolsa a tiracolo, atrás do tio Elson. A adrenalina baixou, que tatu é bicho manso. Rrroncc. Esse barulho jogou nossas certezas por terra. "Tatu não ronca, né tio?", perguntei.

Silêncio. O Tião fala, baixinho: "Ficou mudo, o danado". Rrronnnnnc. Era muito esquisito, não era rugido. "Vambora?", pergunta Tião. "Uai, mas agora não dá, Tião!", quase gritou Tio Elson, eu agarrado nas calças dele. Do alto dos meus 11, 12 anos, já era meio acostumado com mato, mas nunca tinha escutado nada parecido com aquele som.

O Tião dá dois ou três passos à frente e só escutamos o barulhinho da última pisada na folhagem seca  que cobre o chão. Venta, e também dá para perceber alguns relâmpagos sobre nossas cabeças.

"Temos que ficar quietos", sussurra meu tio enquanto repete o pedido aos gestos, como um mímico. Notei na expressão do Tião e do Tio Elson que na verdade ninguém sabia direito que bicho era aquele.

O Tião tenta se apoiar numa pedra e erra o lugar, mete o pé num buraco. Cai, e solta um grito doído e abafado. Agora o peão tinha a expressão de medo.

Meu tio e eu vamos ajudá-lo a se soltar, mas de novo o animal se move na ramagem escura. Era uma grota, que ficava no caminho para o estreito – lugar onde fica a parte larga do rio e começa uma bonita seqüência de pedras onde a correnteza arrebenta em espuma.

Em nossa volta só o breu e ao longe o barulhinho da água. De repente um estalo, como se o bicho de repente tentasse correr ou saltar, depende de que animal seja.

O Tião desespera e dá um tiro na direção da moita. Segundos depois do espocar da espingarda um gemido alto corta a noite. Não sei se do animal abatido ou de maritacas e papagaios –  que também teve, me lembro, um alvoroçar de asas entre os galhos da árvore.

"De todo modo, com o tiro esse animal já saiu daqui", pensei. Decido ir ao lugar de onde partira o ronco. Começa a vir do matagal um arfar descompassado, como se o bicho tivesse dificuldade para respirar.

De um pulo, saltei do lugar onde estava e corri em direção à moita. Escuto melhor a respiração ofegante à medida que chego perto. "Não põe as mãos aí!", grita meu tio.

Abro a folhagem e vejo a cadelinha de olhos assustados, respira de boca aberta com a língua para fora. Acomodados entre a barriga e as pernas traseiras, cinco filhotes miúdos, ainda com os olhos quase fechados de tão novos.

A cadelinha escapou da trajetória da bala. Decidimos que a "caçada" tinha terminado. Em vez de carne, levamos seis bichos para tratar em casa. Os filhotes foram distribuídos e criados na rua onde morávamos. A cadela foi adotada por Tião.

Daí em diante os dois se tornaram companheiros. Ali, no lugarejo ele arrumou mais uma história para contar. A cadela como testemunha a ouvir paciente, deitada perto do balcão do bar que fica em frente à igreja onde íamos à missa aos domingos.

·        Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos.




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