domingo, 5 de março de 2017

Réplica de classe


A imortalidade – não a física, evidentemente, que nos é vedada, mas a como é compreendida pelas pessoas lúcidas e inteligentes, ou seja, a do nome e das obras que lhe sejam associadas – é a máxima aspiração dos indivíduos produtivos e, sobretudo, criativos, mesmo que não admitam. Quase ninguém admite. A minha, porém, confesso, é.

Fico aflito somente em pensar que, poucos dias após a minha morte, o que fui, fiz e pensei pode acabar esquecido até mesmo pelos meus descendentes mais diretos (já nem digo os amigos e demais parentes). E que, ao cabo de escassos anos (se não irrisórios meses ou até dias), não reste o menor vestígio de que um dia amei, odiei, tive saudades, errei, acertei e, em suma,  passei pela Terra e vivi.

Essa imortalidade, todavia, é muito caprichosa. Pessoas que foram especiais e deixaram obras magníficas (não importa de que natureza), dignas de reverência e de registro, foram “atropeladas” pelas circunstâncias e acabaram esquecidas para sempre. E outras, que em toda a vida praticaram um único ato que valeu a pena registrar (disseram algo de original, fizeram alguma coisa de excepcional ou nem isso, ou seja, foram apenas exóticas, quando não patéticas), tiveram seus nomes inscritos, para sempre, na História e são citadas, geração após geração (com seus feitos distorcidos e em geral aumentados, de uma época para outra). A memória dos povos é assim: pífia, banal e quase sempre injusta.

Por exemplo, alguém sabe quem foi a pessoa que pela primeira vez inventou um alfabeto (qualquer deles) e que desenvolveu uma forma, mesmo que rudimentar, de registrar idéias por escrito, de maneira coerente e inteligível? Claro que não!

Mas essa foi uma invenção que revolucionou a História. Lançou as bases do que entendemos como civilização. E quem teve a idéia de inventar o símbolo “zero”, para “quantificar” o nada? Isso, para não indagar quem inventou a roda, quem pela primeira vez aprendeu a produzir o fogo e quem teve a intuição de lançar, antes de qualquer outro, sementes de plantas à terra e teve paciência de esperar os resultados, criando, dessa maneira, a agricultura.

Como se vê, a memória dos povos nem sempre (ou quase nunca) é justa. Todavia, de malucos empedernidos, de tiranos, de genocidas, de pilantras de toda a sorte, as páginas da História estão abarrotadas. Estes é que deveriam ser esquecidos para todo o sempre, mas não são. É verdade que temos sábios e santos, artistas e artesãos que lograram obter esse tipo de imortalidade. Mas a desproporção é imensa em relação aos paranóicos, aos verdugos, aos guerreiros que semearam morte e terror por onde passaram, aos corruptos, aos covardes etc.etc.etc.

Jorge Luiz Borges cita, no livro “História da Eternidade”, de passagem, sem fornecer  detalhes que permitam exata identificação, um desses personagens que lograram se tornar “imortais” em decorrência de um, um único incidente, que poderia ser relevado e esquecido, como uma infinidade de tantos outros, por sua banalidade, mas que ganhou relevância e permanência, por causa de uma resposta supostamente inteligente, perspicaz, irônica e, sobretudo, elegante, a uma ofensa que sofreu.

Trata-se de um certo “Doutor Henderson”, sobrenome bastante comum em inglês (numa consulta ao Google, este registrou, em fração de segundos, cerca de 700 mil páginas em que é citado). Em nenhum lugar se menciona o que fez (além de dar a mencionada resposta ao agravo que sofreu), qual sua especialidade médica, quantos doentes curou, quantos não conseguiu curar, quais foram seus contemporâneos célebres etc.

Ainda assim, não se tratou de um Henderson qualquer. Este foi especial. A citação de Borges, a que me referi, é a seguinte: “Numa discussão teológica ou literária, lançaram um copo de vinho ao rosto de um cavalheiro. O agredido não se alterou e disse ao ofensor: ‘Isto, senhor, é uma digressão; aguardo seu argumento’. (O protagonista dessa réplica, um tal doutor Henderson, faleceu em Oxford por volta de 1787, sem deixar-nos nenhuma lembrança a não ser essas exatas palavras: suficiente e bela imortalidade)”.

As referências que o caracterizam são o ano e o local do seu falecimento. Esses pequenos detalhes, porém, são suficientes para identificá-lo com razoável precisão. Afinal, apesar desse sobrenome ser (como ressaltei) bastante comum, não devem haver tantos Hendersons falecidos em 1787 e em Oxford, na Inglaterra. Se houver mais de um, já será enorme coincidência.

Ademais, provavelmente sua resposta nem foi da forma com que passou à História. Deve ter sofrido cortes e acréscimos nesses dois séculos e 21 anos após haver sido dada (afinal, “quem conta um conto...”). Alguém deve ter testemunhado e registrado a altercação e o respectivo contraponto, caso contrário não haveria a referência. Além disso, nosso quase ilustre personagem contou com a sorte de encontrar um escritor originalíssimo e perspicaz, como Jorge Luiz Borges, que em alguma fonte (que o escritor argentino não revelou qual era), encontrou essa referência e... a imortalizou.

E pronto! O tal do Doutor Henderson deixou de ser um anônimo “ad aeternum”, para se tornar relativa “celebridade”. É assim que funciona essa tal de “imortalidade” que tanto buscamos: ao sabor apenas dos caprichos do acaso e das circunstâncias. Como nos iludimos com o futuro!

Boa leitura!

O Editor.

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Um comentário:

  1. Quando os filhos morrem, os túmulos que recebiam uma limpeza e manutenção pelo menos na véspera do Dia d Finados, fica definitivamente abandonado.

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