quarta-feira, 1 de março de 2017

Quarta-feira de Cinzas


* Por Jomar Moraes


Hoje é dia de…


Referindo-me claramente à expressão que acima se lê, como título desta croniqueta, em 1990 reuni umas tantas delas, e as publiquei num livro intitulado “Cinza das quartas-feiras”. Esse título tomou como ponto de partida o sintagma locucional bem conhecido, Quarta-Feira de Cinzas, dia de todas as ressacas etílicas e morais, porém no calendário católico apostólico romano, o dia vestibular da Quaresma, suposto período de contrição, de arrependimento e até de autopunição pelos excessos praticados no auge do tríduo, em que, acima e além de todos os preceitos e valores, é a carne fremente, indomada e indomável, que vale. Carnaval, carnevale.

Mas, como ia dizendo e fiquei na metade do caminho, tomei o sintagma locucional quarta-feira de cinzas e a partir dele cheguei ao título do livro, que é, repito, “Cinza das quartas-feiras”. Não se trata de um mero jogo de palavras, mas de um título que continua fazendo sentido, e que no passado fazia mais sentido ainda, pois nas quartas-feiras de cinzas, durante seguidos anos, este nosso jornal não circulava, fato que me valia o único dia de férias que eu tinha por certo, no decurso de cada ano. Hoje o aperreio aumentou, pois nem bem estamos a duas semanas da tal quarta-feira de cinzas, o pessoal da Redação começa a telefonar, lembrando que a crônica da quarta-feira fatal tem de ser entregue antecipadamente. E sobre isso, falo no texto a seguir transcrito, sem nenhum constrangimento, porque, sendo meu, como de fato é, posso usá-lo como e quantas vezes me aprouver.

Sobre ser de crônicas o citado meu livro, assim o considero, apoiado na indiscutível autoridade de Fernando Sabino, um dos príncipes da crônica brasileira, que no livro “A falta que ela me faz”, escreve, a certa altura: “Crônica? Nunca a célebre definição de Mário de Andrade (sobre o conto) veio tão a propósito: crônica é tudo aquilo que chamamos de crônica”.

‘As crônicas ora reunidas apareceram, primeiramente, no suplemento Alternativo (seção “Hoje é Dia de…”), de O Estado do Maranhão, onde escrevo às quartas-feiras, desde fevereiro de 1984.

Pelo menos sob um aspecto este volume tem um mínimo de unidade: seu conteúdo, salvo raras exceções, é datado, tópico, circunstancial. Corresponde à minha interpretação de fatos do cotidiano maranhense e brasileiro. Reflete atitudes e sentimentos decorrentes dos estímulos mais diversos. Tudo, pelo comum, escrito no calor da hora, e com a pressa de quem é incapaz de fazer crônicas antes de esgotado o prazo estabelecido pela Redação.

Isso explica pequenas modificações de forma que, aqui e ali, julguei necessário introduzir nestes textos destinados à existência por um dia, e que agora podem – quem sabe? – ganhar alguma sobrevida. Para o que nasceu com destino tão precário, já é muito.

Ficam, assim, dessas quartas-feiras que o passar do tempo vai contando às centenas, as cinzas que encherão os vazios das quartas-feiras de cinzas, quando a ressaca ao irresistível tríduo não deixa nenhuma alternativa para a edição do Alternativo, o que dá ao cronista suas curtas, únicas e merecidíssimas férias.

Talvez a publicação deste livro seja uma comprovação a mais de que Plínio, o Velho, dizia uma verdade, que tantos repetiram, entre eles Cervantes, e que pode entrar nesta paráfrase, com o auxílio da conhecida sentença de Mallarmé: nenhum livro é tão mau que não tenha algo de bom, e tudo, neste mundo, existe para terminar num livro’.

Depois de transcrever-me a mim mesmo, entre aspas simples, trago à colação, para terminar, um belo e tematicamente apropriado soneto de meu saudoso confrade Fernando Viana, que muito me honrou com sua amizade.

Confete

Este confete eu guardo: é uma lembrança
do meu, do teu, do nosso Carnaval!
– três dias de ilusões que a gente lança
na conta do recalque universal…

Lembro o Pierrô e a Colombina mansa,
enlaçados na síncope irreal
do beijo que, trocado após a dança,
sublimou nosso instante emocional!

Só restou da fogueira desses dias,
sob as cinzas das doidas alegrias,
este fulvo confete cor de mel;

restou este confete ínfimo e triste
– mas, ah! quanta saudade não existe
num tão pequeno disco de papel!

(Do livro “Seara”, Sioge, 1979)


* Jornalista e escritor, membro da Academia Maranhense de Letras, falecido em agosto de 2016.

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