domingo, 2 de outubro de 2016

O retorno


* Por Risomar Fasanaro


Ante o espanto de todos, a coisa aconteceu.

Embrulhado em farrapos sobre a cama, o velho agonizante, embora mal pudesse falar, derramava impropérios e maldições sobre a filha que só lhe trouxera desgostos. Respirando com  muita dificuldade, quase sussurrando, pedia-lhe que não chorasse sobre seu cadáver já que era ela a causa de sua morte, com sua vida fácil, sua sem-vergonhice, sua desonra. Pagaria. Ficasse certa de que pagaria. Deus haveria de lhe fazer justiça, se Ele existisse... Foram suas últimas palavras.

A moça não chorava, não dizia nada. Os olhos  fitavam o pai. Águas de um lago congelado. Ninguém saberia dizer quanto tempo ficou assim.

Logo depois o velho entrou em coma e morreu. As poucas pessoas presentes dentro do quarto, nem mesmo souberam repetir direito como tudo acontecera. Nem mesmo elas acreditavam no que tinham visto.

Morto sobre a cama, o rosto começou a remoçar. Foi remoçando, remoçando, remoçando diante da surpresa dos que ali permaneciam, grudados no chão; estupefatos.

O tempo passava rápido e, era como se houvesse enlouquecido. Como se os relógios acelerassem em sentido inverso e, em segundos, o corpo pareceu ter setenta, sessenta, cinqüenta anos, e aquilo continuou. Foi ficando mais e mais jovem, tomando as feições de um adolescente, de uma criança, diminuindo, diminuindo  até que se tornou um bebê.

A filha, horrorizada, continuava imóvel. As mãos crispadas sobre o peito em desespero total, não tirava os olhos do que se passava sobre a cama.

E a coisa não parou ali. O bebê  foi  se transformando em feto e diante de todos, uma película, sabe-se lá saída de onde, o envolveu. Foi quando as pessoas viram que, de repente o ventre da moça tornou-se enorme, como se em final de gravidez.

No mesmo instante, atônitas, procuraram no morto a explicação para o que estava acontecendo, mas constataram que a cama estava vazia.

Depois, o ventre da filha foi diminuindo, diminuindo... diminuindo... e, então ela começou a suar frio e a sentir enjôo.

Foi até a sala, sentou-se em uma poltrona, para ver se melhorava, mas o enjôo aumentou. Aumentou tanto que ela não conseguiu segurar. Levantou-se apressadamente e se dirigiu ao banheiro quase correndo. Lá se pôs a vomitar tudo que comera durante o dia.


* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.


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