domingo, 2 de outubro de 2016

Consciência e identidade da América


* Por Alejo Carpentier


Aos latino-americanos da minha geração coube um estranho destino que por si só bastaria para diferenciá-los dos europeus; nasceram, cresceram, amadureceram, em função do concreto armado... Enquanto o europeu nascia, crescia, amadurecia, entre pedras seculares, velhas edificações modificadas ou anacronizadas somente por alguma tímida inovação arquitetônica, o latino-americano nascido nos albores deste século de inventos prodigiosos, mutações, revoluções, abria os olhos no âmbito de cidades que, quase que totalmente estagnadas durante o século XVII ou XVIII, com um baixíssimo aumento de população, começavam a agigantar-se, a estender-se, a espalhar-se, a elevar-se, ao ritmo das misturadoras de concreto. A Havana que percorri na minha infância era ainda parecida à de Humboldt; o México que visitei em 1926 era ainda o de Porfírio Diaz; a Caracas que conheci em 1945 era ainda muito semelhante à Caracas descrita por José Martí.

E, de repente, eis que nossas modorrentas capitais se tornaram cidades de verdade (anárquicas em seu desenvolvimento repentino, anárquicas em seu traçado, excessivas, desrespeitosas em seu afã de demolir para substituir), e o nosso homem, consubstanciado com a cidade, torna-se homem-cidade, homem-cidade-do-século-XX, quer dizer: homem-História-do-século-XX, em povoados que rompem com seus valores tradicionais, passam, em poucos anos, pelas tremendas crises de adolescência e começam a firmar-se com características próprias, ainda que em atmosfera caótica e desacertada.

O latino-americano viu surgir, nesta época, uma nova realidade, realidade da qual foi juiz e parte, criador e protagonista, espectador atônito e ator principal, testemunha e cronista, denunciante ou denunciado.  "Nada do que me cerca me é alheio" poderia dizer, parafraseando o humanista renascentista. "Isto foi eu que fiz, aquilo eu vi construir; aquilo mais adiante me prejudicou ou eu amaldiçoei. Mas fiz parte do espetáculo - seja como ator principal, seja como corista, ou como coadjuvante"... Mas, montado o cenário, colocadas as bambolinas, pendurados os telões, é preciso ver, agora, o que vai ser reapresentado - comédia, drama ou tragédia - no vasto teatro de concreto armado.

E aí que está o verdadeiro problema: com que autores poderemos contar? Quem serão estes autores?... E para começar... quem sou eu, que papel serei capaz de desempenhar e, acima de tudo, que papel me cabe desempenhar?... Eterno reviver do "conhece-te a ti mesmo ". Mas, de um "conhece-te a ti mesmo", que se formula num mundo - o que circunda nossas ambiciosas e irreverentes cidades modernas - que, para ser honestos, conhecíamos muito mal até agora e que só agora (de poucos anos para cá: meio século apenas) estamos começando a conhecer profundamente. Está longe o tempo em que os famosos e envaidecidos "cientistas" de Porfírio Diaz, nas comemorações do centenário da independência mexicana, proclamavam que estavam resolvidos todos os enigmas do nosso passado pré-colombiano. Está longe o tempo em que contemplávamos nossos grandes homens do passado do ponto de vista único de uma devoção que excluía qualquer enfoque crítico, do imediato e do contingente... Está longe o tempo em que víamos nossa História como uma mera crônica de ações militares, quadro de batalhas, intrigas palacianas, ascensões e quedas, em textos que ignoravam o fator econômico, étnico, telúrico, de todas aquelas realidades subjacentes, de todas aquelas pulsões soterradas, de todas as pressões e apetites estrangeiros - para ser exato, imperialistas - que faziam da nossa história uma história diferente das demais histórias do mundo. História diferente desde o começo, já que esta terra americana foi o teatro do mais sensacional encontro étnico registrado nos anais do planeta: encontro do índio, do negro e do europeu de tez mais ou menos clara, destinados, no futuro, a misturar-se, entremisturar-se, estabelecer simbioses de culturas, de crenças, de artes populares, na mais tremenda mestiçagem já vista... "Temos que ser originais" - costumava dizer Simón Rodríguez, mestre do Libertador... Mas, quando pronunciava estas palavras, não tinha que fazer o menor esforço para ser original - pois já éramos originais de direito e de fato, muito antes que o conceito de originalidade nos fosse dado como meta.

Não incorre em vão convencimento americanista quem afirmar hoje, com perfeito conhecimento de causa que, antes que os conquistadores espanhóis o contemplassem sem o entender, exibia-se no Templo de Mitla, no México, o mais perfeito apogeu de uma arte abstrata longamente amadurecida - arte abstrata que não resultava de uma mera intenção de ornamentação geométrica, simétrica e reiterada, mas sim da disposição perfeitamente intencional de composições abstratas, de idêntico tamanho, nunca repetidas, vistas, cada uma como um valor plástico completo, independente e fechado. Não é preciso ser guiado por um excessivo amor à nossa América, para reconhecer que nas pinturas que adornam o templo de Bonampak , em Yucatán, apresentam-se diante de nós figuras humanas em escorços de uma audácia desconhecida pela pintura européia da mesma época - escorços que se assemelham, embora muito anteriores, ao de um Cristo de Mantegna, por exemplo. E tem mais: só agora estamos começando a nos aprofundar na maravilhosa poesia náhuatl (2) e estamos começando a perceber a singular e profunda essência filosófica das grandes cosmogonias e dos mitos originais da América.

E tem mais. Sem citarmos exemplos que poderiam se multiplicar ao infinito, desde o tempo da Conquista e da Colônia, vemos afirmar-se, de mil maneiras, a originalidade e a audácia do homem americano em obras de caráter muito diferente. É aqui, nesse nosso continente, onde nunca chegaram o romântico e o gótico, onde a arquitetura barroca encontrou suas expressões mais diversas e completas - no México, por todo o espinhaço Andino - com o emprego de materiais policrômicos, o uso de técnicas aperfeiçoadas pelo artesão índio, que os arquitetos europeus desconheciam. É aqui, nesta terra, onde, com as ininterruptas sublevações de índios e negros (desde os primórdios do século XVI), com os Comuneros de Nova Granada, com a gesta de Túpac Amaru, até o tempo das nossas grandes lutas pela independência, se assistiu às primeiras guerras anticoloniais - pois foram fundamentalmente guerras anticoloniais - da história moderna... E, indo aleatoriamente sem me deter nesta ou naquela mostra de nossa originalidade, caberia lembrar, neste ano que se denominou "Ano da mulher", que o primeiro documento energicamente feminista, firmemente feminista (documento onde se reivindica para a mulher o direito de acesso à ciência, ao ensino, à política, a uma igualdade de condição social e cultural oposta ao "machismo" que muito se vê em nosso continente...), esse documento se deve (em 1695) à portentosa mexicana Sor Juana Inés de la Cruz - autora, diga-se de passagem, de poemas "negros" que, pelo tom, se antecipam de maneira incrível a certos poemas de Nicolás Guillén, o grande poeta que vocês ouviram, há pouco, neste mesmo salão nobre.

Mais, mais e mais se poderia falar de tudo isso. Sobram bons exemplos. Nossos libertadores, nossos mestres de pensamento, nos legaram milhares de páginas cheias de observações, de análises, de considerações, de advertências, que nos deixam atônitos por sua atualidade, pela sua vigência, pela sua aplicabilidade ao presente... E agora, que há pouco mais de um século, a obra de Marx nos abriu o vasto continente de uma história que anteriormente tínhamos apenas entrevisto; agora que, dispondo de um instrumental analítico que transformou a história em ciência, podemos considerar o passado sob novos ângulos, comprovando verdades que passaram desapercebidas pelos nossos antepassados, é que o homem-cidade-século-XX, o homem nascido, crescido, formado em nossas proliferantes cidades de concreto armado, cidades da América Latina, tem o dever incontestável de conhecer os clássicos americanos, de relê-los, de meditar sobre eles, para encontrar suas raízes, suas árvores genealógicas de palmeira, de apamate ou de ceiba , para tentar saber quem é, o que é e que papel deverá desempenhar, absolutamente identificado consigo mesmo, nos vastos e turbulentos cenários, onde, atualmente, estão sendo representadas as comédias, os dramas, as tragédias - sangrentas e multitudinárias tragédias - do nosso continente.

Homem que cresceu com a Havana do século XX, homem que viu crescer a Caracas do século XX - homem que viu crescer esta universidade, que viu construir-se o stábile de Calder que se abre permanentemente sobre nossas cabeças neste anfiteatro, não saberia agradecer com palavras de mero protocolo a demonstração de afeto e estima que me oferecem aqui esta noite. Dizer que estou emocionado é pouco. Melhor e mais válido é dizer que esta noite ficará escrita com maiúsculas na cronologia de minha existência, agora que acabo de dobrar o temível cabo dos setenta anos no reino deste mundo... E é inútil dizer que agradeço profundamente a meu amigo Aléxis Márquez Rodríguez pelas palavras que sobre mim, minha trajetória e obra, acaba de pronunciar.

E lhe agradeço mais ainda, se levarmos em conta que disse coisas, sobre mim, que pertencem a categoria daquelas coisas que um escritor não pode dizer sobre si mesmo, tendo que esperar que a sagacidade crítica de outros sublinhe certos fatos que têm uma enorme importância para a pessoa, objeto da crítica. Ressaltou Aléxis Márquez Rodríguez, para minha satisfação, confesso-o, que nos meus escritos - desde os da minha primeira juventude - observa-se uma certa unidade de propósitos e anseios. Quer dizer que pouco me distanciei de uma trajetória ideológica e política que já se tinha firmado em mim quando, lá por 1925, escrevi um artigo sobre o admirável romance soviético de Vsevolod Ivanov, O trem blindado 14-69, onde dizia o que poderia repetir agora se tivesse que expressar meu pensamento, minhas convicções ante o processo e as contingências da época que estamos vivendo agora... É certo - e me orgulho disso - que tive uma visão precoce da América e do futuro da América (me refiro, é claro, àquela América que José Martí chama "Nossa América")... Mas... Tinha eu muito mérito nisso?... Não acredito. Tive sorte, isso sim. A grande sorte de ter me encontrado, quando cheguei a Havana, cheio de ambições juvenis, depois de uma infância no campo, com homens que pude imediatamente considerar - apesar de sua juventude - como verdadeiros mestres. E esses mestres foram o admirável Julio Antonio Mella, que, precocemente amadurecido pelas agitações universitárias da época, fundou, em 1925, com Carlos Balinto, o Partido Comunista de Cuba; Rubén Martínez Villena, magnífico poeta que um belo dia renunciou a toda glória literária para dedicar-se a uma luta determinante no processo revolucionário que conduziu à queda e fuga do ditador Gerardo Machado, em 1933; Juan Marinello, hoje mais ativo e enérgico que nunca, apesar de ter dobrado, faz tempo, o cabo dos setenta anos - totalmente entregue ao serviço da Revolução com que sempre tinha sonhado - e que me revelou a grandeza e a profundidade da obra martiana que (é triste ter que reconhecer isso) era muito pouco conhecida na Cuba dos anos 20, por ainda não existirem edições satisfatórias nem completas dessa obra... Com tais mestres estive e com eles aprendi a pensar. E é interessante lembrar que já em 1927, pude assinar com tais homens um manifesto premonitório, onde nos comprometíamos a trabalhar: pela revisão dos valores falsos e ultrapassados; pela arte vernácula e, em geral, pela arte nova em suas diversas manifestações; pela reforma o ensino público; pela independência econômica de Cuba e contra o imperialismo ianque; contra as ditaduras políticas unipessoais no mundo, na América, em Cuba; pela cordialidade e união latino-americanas.

Ao assinar este documento não nos atrevíamos a sonhar que viveríamos para ver realizados tais anseios, que nos pareciam extremamente distantes, remotos contrariados de antemão - acreditavam muitos - por uma fatalidade geográfica, e que veríamos cumprir-se no início de 1959, com o triunfo da Revolução Cubana, e a reafirmação desse triunfo na decisiva e transcendental batalha de Playa Girón, primeira grande vitória de uma nação de nossa América mestiça (como a chamou, mais de uma vez com orgulho, José Martí) contra o mais temível dos imperialismos... ("O do gigante com botas de sete léguas que nos despreza" - e volto a citar Martí).

Sei que alguns se surpreenderam quando, no início de 1959, encontrando-me tão feliz entre vocês, estando tão incorporado à vida venezuelana, tendo aprendido tanto sobre sua natureza, sobre sua história, sobre suas tradições tão profundamente latino-americanas, rompi com essa trajetória venezuelana de 14 anos, para regressar a meu país... Mas havia vozes que me chamavam. Vozes que tinham voltado a erguer-se sobre a terra que as tinha sepultado. Eram as vozes de Julio Antonio Mella, de Rubén Martínez de Villena, de Pablo de la Torriente Brau, de tantos outros que tinham mergulhado numa longa, tenaz e cruenta luta. E eram as vozes vivas, bem vivas ainda, de Juan Marinello, de Nicolás Guillén, de Raúl Roa e de tantos outros que tinham entregue sua energia, sua experiência, seus conhecimentos, seu entusiasmo, à grande obra revolucionária que vinha em gestação desde a história transcendental e jornada de 26 de julho de 1953, com a tomada do Quartel de Moncada, dirigida por aquele que, meses depois, interrogado sobre os motivos inspiradores de sua ação, responderia simplesmente: "Fomos guiados pelo pensamento de Martí". Ouvi as vozes que tinham voltado a soar, devolvendo-me à minha adolescência; escutei novas vozes que agora soavam e achei que era meu dever empregar a minha energia, a minha capacidade - se é que a tinha - a serviço da grande tarefa histórica latino-americana que se estava levando adiante em meu país.

E essa tarefa estava profundamente enraizada na própria história de Cuba, em seu passado, no pensamento ecumenicamente latino-americano de José Martí, para quem nada que fosse latino-americano lhe era alheio. Correspondia a uma tradição que remontava aos dias em que uma primeira tentativa de liberação de Cuba, através de uma guerra anticolonial contra o poderio espanhol, originou-se no seio de uma sociedade secreta que não por acaso ostentava o nome de "Os Raios e Sóis de Bolivar ..." Daí que diante da imagem de um passado cristalizado em ação presente, em realidade atual e tangível, tenha se intensificado de tal modo, na Cuba de hoje, não só o estudo da história da pátria mas também da história do continente, convencidos que estamos de que nada do que é latino-americano pode nos ser indiferente, e que as lutas, as vitórias, os dramas, as quedas e os triunfos das nações irmãs do continente, são acontecimentos que nos concernem diretamente e nos trazem alegria ou tristeza, conforme se ofereçam ao mundo como motivo de gozo ou de desconsolo momentâneo.

Não sei até que ponto os jovens latino-americanos de hoje se dedicam ao estudo sistemático, científico, de sua própria história. É provável que a estudem muito bem e saibam tirar fecundos ensinamentos de um passado muito mais presente do que se costuma acreditar, nesse continente, onde certos fatos lamentáveis costumam repetir-se, mais ao norte, mais ao sul, com cíclica insistência. Mas, pensem sempre - tenham sempre presente - que, no nosso mundo, não basta conhecer a fundo a história da pátria para adquirir uma verdadeira e autêntica consciência latino-americana. Nossos destinos estão ligados diante dos mesmos inimigos internos e externos, diante das mesmas contingências. Podemos ser vítimas de um mesmo adversário. Daí que a história de nossa América deva ser estudada como uma grande unidade, como a de um conjunto de células inseparáveis umas das outras, para chegar-se a entender realmente o que somos, quem somos, e que papel devemos desempenhar na realidade que nos circunda e dá um sentido a nossos destinos. Dizia José Martí, em 1893, dois anos antes da sua morte: "Nem o livro europeu, nem o livro ianque, nos darão a chave do enigma hispano-americano", acrescentando mais adiante: "Ë preciso ser, ao mesmo tempo, homem de sua época e homem de seu povo, mas deve-se ser antes de mais nada, o homem de seu povo". E para entender esse povo - esses povos, acrescentaria eu - é preciso conhecer sua história a fundo.

Quanto a mim, a título de resumo das minhas aspirações presentes, citarei uma frase de Montaigne que sempre me impressionou pela sua beleza simples: "Não há melhor destino para o homem que o de praticar cabalmente seu ofício de homem". Esse ofício de homem, tentei praticá-lo da melhor maneira possível. Nisso estou e nisso continuarei, no seio de uma revolução que me fez encontrar a mim mesmo no contexto de um povo. Para mim terminaram os tempos de solidão. Começaram os tempos de solidariedade. Porque como bem disse um clássico: "Há sociedades que trabalham para o indivíduo. E há sociedades que trabalham para o homem". Homem sou e só me sinto homem quando meu palpitar, meu pulsar profundo, sincroniza-se com o pulsar de todos os homens que me rodeiam.

(1)Discurso pronunciado por Alejo Carpentier na Aula Magna da Universidade Central da Venezuela, a 15 de maio de 1975, por ocasião da homenagem que lhe renderam a própria Universidade, o Ateneu de Caracas, a Associação de Escritores Venezuelanos e a Associação Venezuelana de Jornalistas. (Nota do comentarista)

(2)Principal idioma falado pelos índios mexicanos. (N do T.)


* Novelista, ensaísta e músico cubano.

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