Excentricidade levada às últimas
consequências
O personagem da consagrada e premiadíssima série televisiva “Dr.
House”, interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie, tinha, como uma de suas
tantas características, o hábito de dizer frases, aparentemente cínicas, mas
com inegável fundo de verdade, nos momentos mais dramáticos, nas suas tentativas
de diagnosticar moléstias exóticas e raras. Uma delas, que me lembro, em
determinado episódio do seriado, dita em tom de indagação, foi a seguinte: “Todos
nós não temos nossas loucuras? Nossas excentricidades não são o que nos fazem
humanos?”. E temos de fato tudo isso. Alguns, no entanto, levam essas coisas a
extremos. São excêntricos em demasia. É o caso do jornalista e escritor norte-americano
Ambrose Bierce, que além de pensamentos e atitudes totalmente fora do convencional,
odiava a humanidade, a começar da própria família.
No caso desse personagem entendo ser cabível esta
constatação feita por Fernando Pessoa (não se referindo, óbvio, a essa figura,
mas que cabe a caráter para ele): “Muitos não sabem propriamente distinguir a
originalidade da excentricidade: uma caracteriza o gênio, outra manifesta o
louco”. O que foi, propriamente, Ambrose Bierce? Foi gênio ou foi louco?
Talvez, nem uma coisa e nem outra. Ou, talvez, um pouco de cada uma delas. O
fato é que nunca se enquadrou nos padrões convencionais do que entendemos por “normalidade”.
Por que ele era assim? Estaria fazendo tipo? Mas por tantos anos (quando “desapareceu”
tinha 72)?!!! É improvável! Sua personalidade é que era excêntrica.
Talvez sua infância explique a razão do nosso personagem ser
como foi. Heloíse Seixas, na introdução do livro “Visões da noite” (Editora
Record,1999), escreveu, à certa altura: “Mas a verdade é que Ambrose Gwinett
Bierce já nasceu cercado pelo mistério. E pelo humor negro. Sua família era um
tanto excêntrica e a casa onde veio ao mundo — em Ohio, Estados Unidos, em 24
de julho de 1842 — tinha, dizem, uma atmosfera macabra. Seu pai, Marcus
Aurelius Bierce, já era um sujeito estranho. Dominado pela mulher, fanático
religioso e apaixonado por poesia, deu a todos os 13 filhos (Bierce era o
décimo) nomes que começassem com a letra ‘A’. No caso de Bierce, o nome do
meio, Gwinett, teria sido acrescentado em referência a Ambrose Gwinett,
personagem de uma peça de teatro muito popular no início do século XIX e que
era uma história de crime (tendo seu nome ligado a uma história assim, não
seria esse o crime ancestral de que — como veremos adiante — nos fala Bierce em
seus pesadelos?)”.
A propósito de “Visões da noite”, cabe, aqui, uma
retificação. Em comentário anterior, afirmei que Heloísa Seixas escreveu “sobre”
Ambrose Bierce. Equivoquei-me. O livro é “do” escritor norte-americano e não a
seu respeito. A jornalista em questão foi a tradutora da obra e autora da
citada (e esclarecedora) introdução. Na referida apresentação, Heloísa
acrescentou: “Mas as excentricidades da família de Bierce não param por
aí. Os três irmãos que nasceram depois
de Bierce morreram e ele ficou sendo o caçula. Quando cresceram, seus nove
irmãos mais velhos se dividiram em grupos antagônicos, que se odiavam, e o
ambiente em casa era de guerra aberta e permanente. A certa altura, um dos
irmãos se rebelou contra o fanatismo religioso da família e fugiu para ser
artista de circo. Uma das irmãs, ao contrário, assumiu tanto esse fanatismo que
foi ser missionária na África, onde teria sido comida por canibais”.
E acrescentou, mais adiante: “Por pouco não aconteceu o
mesmo com um tio de Bierce, Lucius Verus, que foi em expedição ao Canadá para
libertar os índios do jugo britânico e, depois de tomar a cidade de Windsor,
viu acontecer o que menos esperava: os índios se voltaram contra ele e Lucius
Verus precisou sair corrido de lá. Esse tio aventureiro, apesar de meio doido,
foi uma das figuras que mais influenciaram Bierce em sua infância e juventude”.
Oriundo de um ambiente e de uma família assim, pudera, não é de se estranhar
que Ambrose se tornasse excêntrico, mordaz, sarcástico ao extremo e “colecionador
de inimigos” por onde passava.
Não por acaso, o futuro jornalista e escritor – cuja genialidade
nem seu mais acérrimo adversário pode negar – nutriu, por toda sua vida,
implacável ódio a todos os parentes: pai, mãe, irmãos etc.. Talvez a exceção
tenha sido o tio Lucius Verus, que teve influência decisiva em sua brilhante
carreira, quer no jornalismo, quer na literatura. Mas... essa é uma história
que fica para outra vez.
Boa leitura.
O Editor.
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