quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A guerra corta as asas dos anjos


* Por Donald Malchitzky


Nos últimos dias fomos invadidos pela imagem do horror na forma de um anjo morto, afogado numa praia que o  resgataria do horror da guerra dos adultos e seu rastro de fome, violência, insensatez. Jazia na praia, como poderia estar numa cama, esperando pelo carinho da mãe, e artistas o colocaram numa cama,  munido de asas, pois precisaria delas para voar antes da hora, já que o hálito também lhe fora tirado. O mundo que gosta de números,  pensa que é apenas mais um, e é, e isso torna tudo muito pior: é mais um, mais um, mais um, mais muitos.

Fogem do fogo da loucura nos olhos, do ódio que não se explica, do medo do hoje e da incerteza do amanhã. Fogem em busca do que sequer sabem direito o que será, sabem apenas que é melhor do que dar passos em pântanos áridos que sugam suas forças, seus brilhos, seus filhos, suas almas. E morrem nas fugas em barcos apinhados, em caminhões lacrados. Morrem sem que alguém o sinta. E sofrem violência e descaso e discriminação. Alguns poucos são recebidos e têm a oportunidade de se integrar, mas as levas continuam.

Na escola, fomos ensinados a venerar nossos heróis de guerra, os hinos nacionais de enorme número de países falam mais em guerra do que em paz, e quase nenhum fala em tolerância; os locais públicos são infestados de nomes de quem se tornou famoso por matar seus semelhantes. A coragem de enfrentar situações difíceis, como tomar decisões dolorosas, reconhecer o erro, pedir perdão, estar ao lado da justiça e da verdade mesmo que isso possa ser perigoso, esta coragem não merece quase nada de atenção, não é valorizada, não recebe  homenagens.

No filme “Stalingrado –  batalha final”, talvez o mais verdadeiro filme de guerra jamais filmado, há uma cena em que um soldado é atingido por uma descarga e seu corpo  cortado ao meio, a metade de cima cai em pé e ele sobrevive por breves instantes, gritando, para desespero de seus companheiros. Esse é o heroísmo da guerra: por volta de 1.400.000 pessoas, entre soldados e civis, morreram em Stalingrado. Muitos de fome  e frio, seguindo ordens de líderes desvairados.  Quantos deles são nomes de ruas? Mas nomes dos generais que ordenaram a matança figuram em placas.

A guerra corta as asas dos anjos, como do “Menino de sua mãe”, de Fernando Pessoa:

“Lá longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece
O menino de sua mãe”.

E não tem como colá-las de volta, já não podem voar.



* Escritor

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