terça-feira, 4 de agosto de 2015

Um caso de amor – Parte III


* Por Pedro J. Bondaczuk


(CONTINUAÇÃO)


VII

Se Valquíria ainda não admitira que estava apaixonada por Theobaldo (e estava), o escritor, por seu turno, tinha plena consciência de que estava amando, como nunca antes amara alguém, à sua encantadora secretária. Não podia passar um minuto sem ela. A moça virara uma obsessão Na sua ausência, sentia-se inquieto, tenso, ansioso e nada parecia ter graça. Assim que ela adentrava à porta do seu gabinete, porém... o mundo se iluminava. Parecia ouvir a música dos anjos quando ouvia a sua voz doce e baixa sussurrando-lhe bom dia. Gostava de tudo nela: do rosto, dos cabelos, dos olhos, do corpo, do andar, do perfume, de tudo, tudo.

Alguns dias depois que descobriu que estava amando, passou a fazer um diário, mas sem nenhuma preocupação com estilo ou até mesmo coerência. Registrava o que sentia de forma intuitiva, assim como todas as circunstâncias dos seus encontros (por enquanto apenas profissionais) e desencontros, quando ela não vinha trabalhar, nos finais de semana.

Em presença de Valquíria, sentia-se confiante, vigoroso, jovem e brilhante. Citava trechos e trechos de poemas que lera na juventude, de T. S. Eliot, Walt Whitman, Drummond, Bandeira e Mário Quintana, entre tantos outros, e admirava-se da própria memória. A moça, por sua vez, ouvia-o, embevecida, como que hipnotizada, sem tirar os olhos do seu rosto, com um sorriso da mais completa beatitude pendurado nos desejáveis lábios.

Certo dia, após o banho, olhando-se no espelho, Theobaldo pilhou-se falando sozinho, em voz alta, em tom discursivo. Era um desabafo que há muito queria fazer, mas jamais verbalizara. “Como a natureza é sacana! Derruba nossos cabelos, enfraquece nossos olhos, murcha nossa pele, aumenta nossa barriga, reduz gradativamente nossas forças e energias, mas mantém a atração pelo sexo oposto. E por garotas novas, recém-saídas da meninice! Ainda se fizesse com que nos sentíssemos atraídos por mulheres maduras, da nossa faixa etária, vá lá! Mas a sacana faz com que fiquemos vidrados somente em carne nova”, pilhou-se gritando em direção ao espelho.

“E que chances temos de competir com garotões sarados, a cada geração mais altos e mais saudáveis, que cuidam da aparência – da pele, dos cabelos, dos trajes – tanto ou mais até que as mulheres e que são cada vez mais bonitos, pelo menos no critério feminino?”, prosseguiu. “Ne-nhu-ma!!!”, gritou, escandindo a palavra.

“Se a natureza fosse realmente justa, já que uma das suas leis é o envelhecimento de todos os seres vivos, faria, no nosso caso, dos homens, com que a atração sexual desaparecesse depois de certa idade. Ou, melhor, que ficássemos sem pinto. Isso mesmo! Que o pinto fosse encolhendo, gradativamente, encolhendo, encolhendo e encolhendo, à medida que o tempo passasse, até desaparecer de vez”, completou, sempre em voz alta. A sorte é que àquela altura não havia ninguém em casa. Caso contrário... pensariam que Theobaldo estivesse bêbado (o que era o mais provável) ou pirando de vez. Não ocorria, contudo, nem uma coisa e nem outra. Estava, apenas, perdidamente apaixonado.

Diga-se, a favor do veterano escritor, que desde que conhecera Valquíria, sua aparência mudara muito, e para melhor. Deixara crescer os cabelos e penteava-os de maneira a esconder as profundas entradas que o caracterizavam. Barbeava-se todos os dias e pintava meticulosamente as mechas grisalhas que antes se concentravam nas têmporas. Perdera por completo a barriga e seus olhos, antes opacos e circundados por papadas de tom azulado, estavam brilhantes, vivos e sem nenhum sintoma de excessos, que não mais cometia. Theobaldo rejuvenescera, sem nenhum exagero, bem uns quinze anos. O amor, ah o amor! Quantos milagres não faz!

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VIII

Quando um homem e uma mulher se amam, e convivem, todos os dias, sob o mesmo teto, não importa se no trabalho, na escola ou em qual lugar, e quando seus corpos e mentes se atraem e anseiam desesperadamente um pelo outro, a consumação desse amor se torna meramente questão de tempo e das circunstâncias.

Há exceções, claro, mas este não era o caso de Theo e Val. Ambos se comiam pelos olhos, a despeito da enorme diferença de idade que os separava. Tinham mais coisas em comum do que diferenças. O principal elo que os unia, claro, era o profundo gosto mútuo por literatura. Mas não apenas isso. Gostavam das mesmas músicas, mesmos livros e mesmos filmes, entre tantos outros gostos e preferências.

A revelação, se é que podemos chamar assim (já que ambos estavam conscientes da paixão que nutriam) ocorreu por acaso, como quase sempre acontece nessas circunstâncias. Era uma tarde de sábado, fria e chuvosa, mas a temperatura no gabinete de trabalho de Theobaldo era de “fervura”.

Ambos estavam repassando os dois últimos capítulos que o escritor havia produzido do romance “Um caso de amor”, que era o que estava mais adiantado dos trinta esboços que tinha no arquivo do computador. Valquíria ficou fascinada, em particular, por determinado parágrafo, cujas palavras levaram-na às lágrimas. Aproximou-se do escritor, com a cópia impressa nas mãos, para mostrar-lhe exatamente qual o trecho que a comovera tanto. Intencional ou casualmente, seus corpos se tocaram. O perfume da moça, misto de canela e jasmim, embriagou-o, mais do que as generosas doses de uísque puro que costumava tomar há não faz muito. Subitamente, como que jogados para a frente por alguma força invisível, porém irresistível, ambos caíram nos braços, um, do outro, e trocaram o primeiro e demorado beijo.

Quando se deram conta, estavam transando, furiosamente, no confortável sofá do gabinete. Valquíria, de olhos fechados, vivia a sua recorrente fantasia. Para ela, estava fazendo amor com o pai e não queria que esse momento acabasse nunca. Satisfeitos, nenhum dos dois mostrou o menor constrangimento pelo que havia ocorrido. Ambos sabiam que mais cedo ou mais tarde isto iria ocorrer, embora a razão de um não fosse exatamente a mesma do outro. Mas isso não importava.

Com o passar dos dias, o relacionamento se aprofundou, em vez de esfriar, como quase sempre ocorre nesses casos. Valquíria não teve dúvidas e rompeu o namoro com Erasmo. Não ia dar certo mesmo. Ademais, sentia-se apaixonadíssima por aquele homem tão mais velho que na sua imaginação era a figura escrita do pai. Evidentemente, não era. As diferenças eram gritantes, mas para outro observador qualquer, que não Valquíria.

Theobaldo tencionava, até, pedi-la em casamento. Ponderou a situação, porém, conteve o ímpeto e pensou em fazer a proposta em momento mais oportuno. Enquanto isso, no entanto, queria porque queria que ela fosse morar em sua casa. A moça, porém, relutava. Sabia que, em termos práticos, era o melhor a fazer naquele momento. Faria mais economias ainda do que já vinha fazendo. Ademais, passava mais tempo ali do que no seu apartamento. Tinha, portanto, vontade imensa de morar com Theo, de acordar ao seu lado, de satisfazer as suas vontades, de cuidar dele com zelo e carinho de amante, mas não saberia dizer por que, mudava de assunto toda a vez que o escritor insistia nessa proposta.

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IX

Theobaldo estava mais feliz do que nunca, como jamais se sentira em toda sua vida. Seu semblante irradiava essa felicidade por todos os poros e para quem quisesse ver. Parece que emanava uma luz em redor de sua pessoa, um halo azulado e positivo. Caminhava com aprumo, encarava qualquer interlocutor com confiança e a vida futura se lhe afigurava cheia de promessas de muitas alegrias e de infindável sucesso sem nenhuma nuvem escura a toldar o céu das suas esperanças.

Dera um jeito na situação financeira ao vender uma chácara em Itu, que estava no nome de um testa-de-ferro e que, portanto, não tivera que partilhar com a ex-esposa. Conseguira um bom dinheiro pela propriedade, o que resolvera todas as suas pendências com os credores, que deixariam de existir. Foi suficiente para saldar a totalidade das dívidas e ainda lhe sobrou uma quantia nada desprezível para tocar projetos futuros. Estes, aliás, não faltavam. Tinha planos de concluir algum dos trinta livros esboçados (ainda não decidira qual), procurar uma editora de porte médio e assediar os críticos, mesmo que precisasse suborná-los, para que fizessem avaliação positiva da obra. Não admitia, nem, por hipótese, abandonar a carreira de escritor.

Vivia um momento peculiar, particularmente favorável, de criatividade. O que não ajudava muito era sua indecisão sobre em qual enredo se concentrar. Continuava trabalhando em todos os trinta livros, simultaneamente. Alguns já estavam com dez capítulos prontos e outros apenas nos primeiros. Tinha, ainda, esperanças de uma reversão da trajetória de “Clarita” e se propunha a trabalhar melhor na sua divulgação.

Mas o motivo de tanta felicidade de Theobaldo não era, por exemplo, o fato de haver se reequilibrado financeiramente, embora isso contribuísse, e muito, para que se sentisse tão confiante. Não era, igualmente, a fase de intensa inspiração, posto que julgasse isso importantíssimo, já que literatura sempre fora a paixão de sua vida, além de seu ganha pão. E muito menos a retomada do relacionamento com os amigos, que o haviam abandonado no auge da sua crise pessoal. Não, de fato, não era nada disso.

Theobaldo estava feliz porque amava. E mais, porque se sentia plenamente correspondido. Contava, agora, com verdadeira alma-gêmea, que o entendia, ajudava, inspirava e estimulava. O ápice, a culminância, o clímax de tudo isso ocorreu quando o escritor propôs casamento à sua amada e esta aceitou, sem relutar. O acontecimento se deu em um jantar íntimo com Valquíria, no Restaurante Fasano, que ele organizou a pretexto de comemorar o recebimento do dinheiro da venda da chácara em Itu.

Antes, havia comprado o mais rico (e caro) par de anéis de noivado que encontrou na Joalheria Stern. “Val merece o que há de melhor. Se pedir, dou-lhe o mundo e as estrelas”, raciocinou, quando tomou a decisão de pedi-la em casamento. “E se ela não aceitar? E se me disser coisas que não quero ouvir, como, por exemplo, sobre a nossa diferença de idade, que é muito grande? E se Val rir na minha cara e achar a proposta esdrúxula, incoerente e até mesmo indecente?” Tudo isso, e muito mais, passou-lhe pela cabeça. Decidiu arriscar. Afinal, considerava-se bom jogador. Ou perderia tudo numa única aposta ou quebraria a banca.

Theobaldo ensaiou mil declarações, mas as achou todas piegas e não-condizentes com sua condição de escritor. “O que dizer nessas ocasiões?” Como convencer alguém a aceitar um risco tão grande, como se casar com uma pessoa cuja expectativa de vida não era lá essas coisas? Quanto tempo ainda teria antes da morte? Cinco anos? Dez? Com muito custo, vinte, no máximo. “A quantidade, porém, é o que menos importa, mas a qualidade de vida que posso ter”, raciocinou com seus botões.

O pedido que fez, no entanto, assim que concluíram o jantar, entre risos e casos que contaram, um ao outro, foi seco, direto e fulminante, assim como a resposta. Theo tomou as mãos de Val, que estavam geladas, entre as suas e disparou: “Quer casar comigo?”. A moça não se mostrou surpresa e nem se fez de rogada. Sequer pediu tempo para pensar, como normalmente as moças fazem. Nada disso. Não se fez de difícil e nem se mostrou deslumbrada. Respondeu de chofre, diretamente, sem floreios e nem mas: “Sim!!!”.

A um sinal de Theo, visivelmente surpreso e comovido, o garçom trouxe o legítimo champanhe francês, que o escritor havia encomendado com antecedência, e ambos celebraram aquele momento, tão importante para suas vidas, com naturalidade e alegria. “Finalmente vou poder ter o filho com que tanto sonho”, foi o primeiro e talvez único pensamento de Theobaldo. As coisas foram muito mais fáceis do que o escritor imaginara. Ou seja, jamais poderia utilizar esse desfecho em algum de seus romances, por ser, digamos, banal, por não envolver angústia e nem drama, ingredientes que atraem e retêm os leitores. “Que bom que a vida é mais surpreendente e mais simples do que a ficção!”, desabafou baixinho.


(CONTINUA)


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 


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