Um caso de amor – Parte III
* Por
Pedro J. Bondaczuk
(CONTINUAÇÃO)
VII
Se Valquíria ainda não admitira que
estava apaixonada por Theobaldo (e estava), o escritor, por seu turno, tinha
plena consciência de que estava amando, como nunca antes amara alguém, à sua
encantadora secretária. Não podia passar um minuto sem ela. A moça virara uma
obsessão Na sua ausência, sentia-se inquieto, tenso, ansioso e nada parecia ter
graça. Assim que ela adentrava à porta do seu gabinete, porém... o mundo se
iluminava. Parecia ouvir a música dos anjos quando ouvia a sua voz doce e baixa
sussurrando-lhe bom dia. Gostava de tudo nela: do rosto, dos cabelos, dos olhos,
do corpo, do andar, do perfume, de tudo, tudo.
Alguns dias depois que descobriu que
estava amando, passou a fazer um diário, mas sem nenhuma preocupação com estilo
ou até mesmo coerência. Registrava o que sentia de forma intuitiva, assim como
todas as circunstâncias dos seus encontros (por enquanto apenas profissionais)
e desencontros, quando ela não vinha trabalhar, nos finais de semana.
Em presença de Valquíria, sentia-se
confiante, vigoroso, jovem e brilhante. Citava trechos e trechos de poemas que
lera na juventude, de T. S. Eliot, Walt Whitman, Drummond, Bandeira e Mário
Quintana, entre tantos outros, e admirava-se da própria memória. A moça, por
sua vez, ouvia-o, embevecida, como que hipnotizada, sem tirar os olhos do seu
rosto, com um sorriso da mais completa beatitude pendurado nos desejáveis
lábios.
Certo dia, após o banho, olhando-se no
espelho, Theobaldo pilhou-se falando sozinho, em voz alta, em tom discursivo.
Era um desabafo que há muito queria fazer, mas jamais verbalizara. “Como a natureza
é sacana! Derruba nossos cabelos, enfraquece nossos olhos, murcha nossa pele,
aumenta nossa barriga, reduz gradativamente nossas forças e energias, mas
mantém a atração pelo sexo oposto. E por garotas novas, recém-saídas da
meninice! Ainda se fizesse com que nos sentíssemos atraídos por mulheres
maduras, da nossa faixa etária, vá lá! Mas a sacana faz com que fiquemos
vidrados somente em carne nova”, pilhou-se gritando em direção ao espelho.
“E que chances temos de competir com
garotões sarados, a cada geração mais altos e mais saudáveis, que cuidam da
aparência – da pele, dos cabelos, dos trajes – tanto ou mais até que as
mulheres e que são cada vez mais bonitos, pelo menos no critério feminino?”,
prosseguiu. “Ne-nhu-ma!!!”, gritou, escandindo a palavra.
“Se a natureza fosse realmente justa,
já que uma das suas leis é o envelhecimento de todos os seres vivos, faria, no
nosso caso, dos homens, com que a atração sexual desaparecesse depois de certa
idade. Ou, melhor, que ficássemos sem pinto. Isso mesmo! Que o pinto fosse
encolhendo, gradativamente, encolhendo, encolhendo e encolhendo, à medida que o
tempo passasse, até desaparecer de vez”, completou, sempre em voz alta. A sorte
é que àquela altura não havia ninguém em casa. Caso contrário... pensariam que
Theobaldo estivesse bêbado (o que era o mais provável) ou pirando de vez. Não
ocorria, contudo, nem uma coisa e nem outra. Estava, apenas, perdidamente
apaixonado.
Diga-se, a favor do veterano escritor,
que desde que conhecera Valquíria, sua aparência mudara muito, e para melhor.
Deixara crescer os cabelos e penteava-os de maneira a esconder as profundas
entradas que o caracterizavam. Barbeava-se todos os dias e pintava
meticulosamente as mechas grisalhas que antes se concentravam nas têmporas.
Perdera por completo a barriga e seus olhos, antes opacos e circundados por
papadas de tom azulado, estavam brilhantes, vivos e sem nenhum sintoma de
excessos, que não mais cometia. Theobaldo rejuvenescera, sem nenhum exagero,
bem uns quinze anos. O amor, ah o amor! Quantos milagres não faz!
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VIII
Quando um homem e uma mulher se amam, e
convivem, todos os dias, sob o mesmo teto, não importa se no trabalho, na
escola ou em qual lugar, e quando seus corpos e mentes se atraem e anseiam desesperadamente
um pelo outro, a consumação desse amor se torna meramente questão de tempo e
das circunstâncias.
Há exceções, claro, mas este não era o
caso de Theo e Val. Ambos se comiam pelos olhos, a despeito da enorme diferença
de idade que os separava. Tinham mais coisas em comum do que diferenças. O
principal elo que os unia, claro, era o profundo gosto mútuo por literatura.
Mas não apenas isso. Gostavam das mesmas músicas, mesmos livros e mesmos
filmes, entre tantos outros gostos e preferências.
A revelação, se é que podemos chamar
assim (já que ambos estavam conscientes da paixão que nutriam) ocorreu por
acaso, como quase sempre acontece nessas circunstâncias. Era uma tarde de
sábado, fria e chuvosa, mas a temperatura no gabinete de trabalho de Theobaldo
era de “fervura”.
Ambos estavam repassando os dois
últimos capítulos que o escritor havia produzido do romance “Um caso de amor”,
que era o que estava mais adiantado dos trinta esboços que tinha no arquivo do
computador. Valquíria ficou fascinada, em particular, por determinado
parágrafo, cujas palavras levaram-na às lágrimas. Aproximou-se do escritor, com
a cópia impressa nas mãos, para mostrar-lhe exatamente qual o trecho que a
comovera tanto. Intencional ou casualmente, seus corpos se tocaram. O perfume
da moça, misto de canela e jasmim, embriagou-o, mais do que as generosas doses
de uísque puro que costumava tomar há não faz muito. Subitamente, como que
jogados para a frente por alguma força invisível, porém irresistível, ambos
caíram nos braços, um, do outro, e trocaram o primeiro e demorado beijo.
Quando se deram conta, estavam
transando, furiosamente, no confortável sofá do gabinete. Valquíria, de olhos
fechados, vivia a sua recorrente fantasia. Para ela, estava fazendo amor com o
pai e não queria que esse momento acabasse nunca. Satisfeitos, nenhum dos dois
mostrou o menor constrangimento pelo que havia ocorrido. Ambos sabiam que mais
cedo ou mais tarde isto iria ocorrer, embora a razão de um não fosse exatamente
a mesma do outro. Mas isso não importava.
Com o passar dos dias, o relacionamento
se aprofundou, em vez de esfriar, como quase sempre ocorre nesses casos.
Valquíria não teve dúvidas e rompeu o namoro com Erasmo. Não ia dar certo
mesmo. Ademais, sentia-se apaixonadíssima por aquele homem tão mais velho que
na sua imaginação era a figura escrita do pai. Evidentemente, não era. As
diferenças eram gritantes, mas para outro observador qualquer, que não
Valquíria.
Theobaldo tencionava, até, pedi-la em
casamento. Ponderou a situação, porém, conteve o ímpeto e pensou em fazer a
proposta em momento mais oportuno. Enquanto isso, no entanto, queria porque
queria que ela fosse morar em sua casa. A moça, porém, relutava. Sabia que, em
termos práticos, era o melhor a fazer naquele momento. Faria mais economias
ainda do que já vinha fazendo. Ademais, passava mais tempo ali do que no seu
apartamento. Tinha, portanto, vontade imensa de morar com Theo, de acordar ao
seu lado, de satisfazer as suas vontades, de cuidar dele com zelo e carinho de
amante, mas não saberia dizer por que, mudava de assunto toda a vez que o
escritor insistia nessa proposta.
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IX
Theobaldo estava mais feliz do que
nunca, como jamais se sentira em toda sua vida. Seu semblante irradiava essa
felicidade por todos os poros e para quem quisesse ver. Parece que emanava uma
luz em redor de sua pessoa, um halo azulado e positivo. Caminhava com aprumo,
encarava qualquer interlocutor com confiança e a vida futura se lhe afigurava
cheia de promessas de muitas alegrias e de infindável sucesso sem nenhuma nuvem
escura a toldar o céu das suas esperanças.
Dera um jeito na situação financeira ao
vender uma chácara em Itu, que estava no nome de um testa-de-ferro e que,
portanto, não tivera que partilhar com a ex-esposa. Conseguira um bom dinheiro
pela propriedade, o que resolvera todas as suas pendências com os credores, que
deixariam de existir. Foi suficiente para saldar a totalidade das dívidas e
ainda lhe sobrou uma quantia nada desprezível para tocar projetos futuros.
Estes, aliás, não faltavam. Tinha planos de concluir algum dos trinta livros
esboçados (ainda não decidira qual), procurar uma editora de porte médio e
assediar os críticos, mesmo que precisasse suborná-los, para que fizessem
avaliação positiva da obra. Não admitia, nem, por hipótese, abandonar a
carreira de escritor.
Vivia um momento peculiar,
particularmente favorável, de criatividade. O que não ajudava muito era sua
indecisão sobre em qual enredo se concentrar. Continuava trabalhando em todos
os trinta livros, simultaneamente. Alguns já estavam com dez capítulos prontos
e outros apenas nos primeiros. Tinha, ainda, esperanças de uma reversão da
trajetória de “Clarita” e se propunha a trabalhar melhor na sua divulgação.
Mas o motivo de tanta felicidade de
Theobaldo não era, por exemplo, o fato de haver se reequilibrado
financeiramente, embora isso contribuísse, e muito, para que se sentisse tão
confiante. Não era, igualmente, a fase de intensa inspiração, posto que
julgasse isso importantíssimo, já que literatura sempre fora a paixão de sua
vida, além de seu ganha pão. E muito menos a retomada do relacionamento com os
amigos, que o haviam abandonado no auge da sua crise pessoal. Não, de fato, não
era nada disso.
Theobaldo estava feliz porque amava. E
mais, porque se sentia plenamente correspondido. Contava, agora, com verdadeira
alma-gêmea, que o entendia, ajudava, inspirava e estimulava. O ápice, a
culminância, o clímax de tudo isso ocorreu quando o escritor propôs casamento à
sua amada e esta aceitou, sem relutar. O acontecimento se deu em um jantar
íntimo com Valquíria, no Restaurante Fasano, que ele organizou a pretexto de
comemorar o recebimento do dinheiro da venda da chácara em Itu.
Antes, havia comprado o mais rico (e
caro) par de anéis de noivado que encontrou na Joalheria Stern. “Val merece o
que há de melhor. Se pedir, dou-lhe o mundo e as estrelas”, raciocinou, quando
tomou a decisão de pedi-la em casamento. “E se ela não aceitar? E se me disser
coisas que não quero ouvir, como, por exemplo, sobre a nossa diferença de
idade, que é muito grande? E se Val rir na minha cara e achar a proposta
esdrúxula, incoerente e até mesmo indecente?” Tudo isso, e muito mais,
passou-lhe pela cabeça. Decidiu arriscar. Afinal, considerava-se bom jogador.
Ou perderia tudo numa única aposta ou quebraria a banca.
Theobaldo ensaiou mil declarações, mas
as achou todas piegas e não-condizentes com sua condição de escritor. “O que
dizer nessas ocasiões?” Como convencer alguém a aceitar um risco tão grande,
como se casar com uma pessoa cuja expectativa de vida não era lá essas coisas?
Quanto tempo ainda teria antes da morte? Cinco anos? Dez? Com muito custo,
vinte, no máximo. “A quantidade, porém, é o que menos importa, mas a qualidade
de vida que posso ter”, raciocinou com seus botões.
O pedido que fez, no entanto, assim que
concluíram o jantar, entre risos e casos que contaram, um ao outro, foi seco,
direto e fulminante, assim como a resposta. Theo tomou as mãos de Val, que
estavam geladas, entre as suas e disparou: “Quer casar comigo?”. A moça não se
mostrou surpresa e nem se fez de rogada. Sequer pediu tempo para pensar, como
normalmente as moças fazem. Nada disso. Não se fez de difícil e nem se mostrou
deslumbrada. Respondeu de chofre, diretamente, sem floreios e nem mas: “Sim!!!”.
A um sinal de Theo, visivelmente
surpreso e comovido, o garçom trouxe o legítimo champanhe francês, que o
escritor havia encomendado com antecedência, e ambos celebraram aquele momento,
tão importante para suas vidas, com naturalidade e alegria. “Finalmente vou
poder ter o filho com que tanto sonho”, foi o primeiro e talvez único
pensamento de Theobaldo. As coisas foram muito mais fáceis do que o escritor
imaginara. Ou seja, jamais poderia utilizar esse desfecho em algum de seus
romances, por ser, digamos, banal, por não envolver angústia e nem drama,
ingredientes que atraem e retêm os leitores. “Que bom que a vida é mais
surpreendente e mais simples do que a ficção!”, desabafou baixinho.
(CONTINUA)
* Jornalista, radialista e escritor.
Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981
e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras
funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e
“Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos &
Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário),
página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia
Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Pareceu fácil demais. A moça tem 20 anos e ele 70?
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