Leopoldo
Lima: um artista extraordinário
* Por Risomar
Fasanaro
Lembro-me da primeira vez que o vi. Já
ouvira tantas histórias sobre ele, que uma forte emoção tomou conta de mim ao
vê-lo pessoalmente. É que ninguém me falara sobre sua aparência física e ao
vê-lo a impressão que tive foi a de que Van Gogh havia ressuscitado, tal era a
semelhança entre ambos.
Os olhos muito azuis naquele rosto másculo,
marcado por sulcos e emoldurado pela barba e pelos cabelos vermelhos, um pouco
desgrenhados me causaram um forte impacto. Ele me fitou, e tive a sensação de
que “lia” meus pensamentos, tão grande era a força daquele olhar. O porte alto
e magro ajudava a completar aquela impressão de ter de volta o artista
holandês.
Mas aquela impressão não parava no
aspecto físico. Leopoldo Lima, tal qual o pintor dos girassóis, foi a pessoa
mais original que conheci em toda minha vida. Mas estou pondo o carro à frente
dos bois. Vou começar do início.
Havia em 1976 uma feira de artes em
Osasco que Carlos Marx, Irene Garcia, José Pessoa e eu coordenávamos. A feira
se realizava todos os domingos na praça em frente à igreja matriz, hoje
catedral, e ficávamos lá o dia inteiro porque
era ali o ponto de encontro de
pintores, poetas, artesãos, enfim...de todos que queriam expor algum tipo de
arte.
A praça por ser muito arborizada era um
local agradável para se freqüentar, por isso ficava lotada o dia inteiro, mal
dava pra caminhar, de tanta gente, porque além dos artistas locais, começaram a vir muitos de fora, além
das famílias que ali encontraram um local para passar algumas horas do dia.
O prefeito da época ia à praça todos os
domingos, e um dia conversando comigo, disse ter conhecido Leopoldo Lima, um
grande artista de Ribeirão Preto que fazia
uns quadros muito bonitos com
pirógrafo, arte das mais refinadas, segundo ele.
É preciso esclarecer que vivíamos em
plena ditadura, e o partido do prefeito era o PDS enquanto uma grande maioria à
qual eu pertencia, votava no PMDB, única
opção na época para quem era de esquerda. Ao ouvir o que ele dizia, senti
vontade de rir, e só não o fiz por educação. Pensei: “só esse prefeito
direitoso pra achar que trabalho com pirógrafo é arte...”. Contou também que
tinha tido a idéia de fundar um conjunto habitacional só para artistas em uns barracões de uma escola estadual
desativada, ao qual daria o nome de Vila dos Artistas. Completou dizendo ter convidado aquele artista para ser o primeiro
morador do conjunto.
Hoje reconheço que fui injusta e
preconceituosa. Avaliei um trabalho que não conhecia e menosprezava a opinião
de alguém que o conhecia, só porque divergia daquela pessoa politicamente.
Aquela foi uma lição que nunca mais esqueci.
Preocupado com a vinda de Leopoldo,
Carlos Marx conseguiu alguns materiais de construção e eu ia com um corcel
caindo aos pedaços, buscar aqueles materiais na Secretaria de Obras e levá-los
para o local que já chamávamos de Vila..
Carlos e José Pessoa consertaram alguns daqueles galpões, pintaram, enquanto
Irene e eu plantamos algumas árvores e algumas flores para receber o artista de
Ribeirão.
Alguns dias depois daquela “reforma”,
Carlos Marx me informou que o artista já estava na cidade, instalado na “Vila”
e me convidou para ir conhecê-lo. De longe vi na janela do único cômodo de alvenaria, uma cortina que
logo me chamou a atenção pela originalidade. E Leopoldo me contou que tinha emendado
as roupinhas dos filhos para ter sempre a presença deles ali.
Qualquer pessoa se daria conta, diante
daquele homem, que não se tratava de uma pessoa qualquer, impressão primeira que
se consolidou ao longo do tempo que com ele convivemos. E hoje confesso: ao ver
e ouvir o que pensava sobre a vida e as pessoas, se na época não estivesse
apaixonada por outra pessoa, teria me apaixonado por ele. Naquele dia não vi seus
quadros, mas tive a certeza de que o
prefeito não exagerara ao falar dele.
No domingo seguinte, quando expôs na praça, tomei consciência do quanto
estava errada ao fazer uma avaliação precipitada do trabalho de Leopoldo. Ele
utilizava caixotes de maçã que recolhia da feira, desenhava com um pirógrafo e
depois esculpia seus trabalhos. Algo que
só vendo para se ter idéia do que escrevo. E tudo era feito por ele, inclusive
as molduras. E como se não bastasse, escrevia poemas curtos ou frases filosóficas, no verso dos mesmos.
A sua chegada à Feira de Artes é
inesquecível. Em poucos minutos estava cercado de pessoas de todas as idades,
querendo saber tudo sobre ele e sobre os quadros. E ele ali, muito calmo, dando
atenção especial a cada um que chegava.
Algumas pessoas queriam comprar os
trabalhos, mas ele não os vendia. Essa era uma
das suas excentricidades: não vendia nenhum dos seus quadros. Cada um
que se interessava por eles era convidado para ir até à “Vila” que ele
ensinaria a técnica. Bastava levar as madeiras de um caixote de maçã e um
pirógrafo. As pessoas argumentavam: “mas nunca desenhei, não sei...” Ao que ele
respondia: “sabe sim, isso é tudo bobagem, todo mundo sabe, vá lá que eu lhe
ensino”.
Sobre Leopoldo teciam muitas histórias,
algumas que até hoje não sei se são reais ou lendárias. Ele era marceneiro e
diziam que criou a primeira peça com uma parte da sua cama de casal. Ao vê-la
pronta, ficou tão entusiasmado que foi pra rua procurar alguém para mostrá-la.
Na rua encontrou alguns coletores de
lixo e convidou-os para verem o quadro. Os coletores, muito
acanhados, tiraram os sapatos, para não
sujar o piso encerado da sala e, dizem, isso bastou para que Leopoldo depois retirasse
todo o assoalho de madeira, pois assim
nunca mais ninguém retiraria os sapatos para entrar em sua casa.
Encantado com seu trabalho, e com a
grandeza do seu trabalho, o prefeito de Ribeirão doou uma casa para ele morar
com a família. Ali ele vivia em meio a muitas árvores, em um bosque. Difícil
imaginar o que o levou a aceitar o convite para morar em Osasco, em uma escola
desativada, que não apresentava as
mínimas condições de moradia. Não tinha nem água, nem luz, e os galpões apesar
dos reparos de Carlos e de José, ainda estavam muito danificados.
Ainda assim ele montou um curso e eu
fui uma das primeiras a me inscrever. Em suas aulas, ele nos passava mais do
que conhecimentos de arte, eram aulas de vida e a cada dia mais aumentava o número
de alunos. Leopoldo tornou-se assim, uma espécie de guru para todos nós.
Só para se ter uma idéia, da sua
importância para os que freqüentavam a Vila, um dia em que com um canivete,
criava suas sandálias franciscanas, uma arqueóloga lhe pediu o par que ele iria jogar fora, para pendurá-las em
sua casa. E provavelmente as tem até hoje como relíquia.
O fato de não vender seus trabalhos
levava a família muitas vezes a enfrentar dificuldades, e quando a situação
apertava muito, diziam que a mulher, Cleusa, vendia algum quadro escondido. E
os preços, todos sabíamos, era altíssimo.
Algum tempo depois de sua chegada,
Waldomiro Sant’Anna, artista plástico, também veio de Ribeirão morar na Vila e, logo depois Paulo César, pintor,
também se instalou ali. A influência de Waldomiro Sant’Anna na obra de Leopoldo
também se fez presente. A partir da convivência, Leopoldo passou a colorir seus
trabalhos e não é preciso dizer o quanto ficaram mais bonitos.
O núcleo residencial começava a tomar
impulso, e logo depois uma figura muito singular trouxe ao local o “tempero”
que faltava: Ruthenfor. Ele era uma espécie de lúmpen que simplesmente adorava
Leopoldo. E aonde Leopoldo ia, lá estava aquela figura estranha e ao mesmo
tempo extremamente simpática. Assim que
o artista veio para Osasco, dias depois ele chegou. Ruthenfor era uma figura.
Mal-vestido mal enjambrado, como diria minha mãe, mas uma pessoa
interessantíssima. Contava muitas histórias sobre Leopoldo, que ali presente,
ria das “dramatizações” do amigo, imitando-o.
Leopoldo também nos contava que alguns
professores da Universidade de Ribeirão convidavam aquela figura estranha, com
jeito de cientista louco, para dar uma
aula inaugural do ano letivo e que os calouros ficavam impressionados com a sua “erudição”. Ele entrava na sala de aula com ar solene e dizia
uma porção de bobagens sem pé nem cabeça, como se fossem teorias científicas. E
só no final revelava que tudo não passara de uma brincadeira, para divertir os
calouros.
Às vezes Leopoldo fazia uma fogueira e
todos nos juntávamos em um círculo para ouvir as histórias dos dois: Ruthenfor contava
que Leopoldo saía pra comprar cigarros no bar da esquina, e se alguém passava no bar e o convidava pra viajar,
assim, de última hora, ele aceitava o convite e dali mesmo ia, com a roupa que
estivesse; calçando sandálias havaianas e tudo, e só voltava um mês depois, o
que deixava a mulher, Cleusa, muito preocupada.
Como se tratava daquela pessoa que
todos nós adorávamos, exigimos uma “colação de grau” do curso de Pirogravura. O
prefeito presidindo a mesa esperava do mestre palavras de agradecimento, e
perdeu a cor quando Leopoldo proferiu seu discurso: “Olha aqui, chefe, aquilo
ali não dá pra ficar morando. Não tem água, não tem luz, tive de roubar luz da
favela do lado, e se o Sr. não resolver esses problemas. Vou voltar pra Ribeirão.
Estou há seis meses aqui, longe de minha
família, e não tem condições de trazê-la naquelas condições...” A verdade é que
nem a luz nem a água chegaram e nosso
amigo foi embora.
Certa vez, depois que ele já havia
saído de Osasco, eu estava em casa e tinha feito um bolo. Estava tirando-o do
forno, quando tocaram a campainha. Não acreditei quando vi: era ele, Leopoldo, em
carne e osso. Quase morri de tamanha alegria. Todo queixoso me disse, enxugando
os olhos de emoção:
“- Vocês têm carro, poderiam ir me ver,
e não vão. Eu saí de Ribeirão, só trouxe isso” e mostrou uma sacola plástica de
supermercado. “Só tem uma cueca e uma camiseta... não sabia onde você morava,
desci do ônibus e saí perguntando ‘onde mora Risomar?’ Vim porque não agüentava
mais de tanta saudade de vocês. Cadê Carlos? Cadê Irene? E Regina? Perguntei a umas dez pessoas, se conheciam
você, até descobrir que sua casa era por
aqui.”
Aquela foi, consideradas as
circunstâncias, a maior e a mais importante declaração de amor que recebi em
toda minha vida. Emocionada ouvindo aquilo, com os olhos cheios de lágrimas,
não sabia como me desculpar com aquele amigo tão especial.
Imediatamente liguei para os mais
próximos, e em pouco tempo todos chegaram. Tomamos café com bolo como se fosse
uma verdadeira comemoração e realizamos o que, ironicamente foi a última vez
que o vi.
Leopoldo faleceu alguns anos depois,
sem o reconhecimento merecido pelo trabalho grandioso que realizou. Um trabalho
tão forte tão carregado de sentimento quanto o do pintor holandês e teve também
uma morte, embora diferente, tão melancólica quanto a daquele gênio. A Vila dos
Artistas sobreviveu, mas também teve um final muito triste e dela falarei um
outro dia. Hoje não dá.
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora
de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de
Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e
José Louzeiro.
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