A
universidade e os crimes contra os índios
* Por
José Ribamar Bessa Freire
"Nesta
hora que estamos conversando aqui alguém deve estar matando um índio, só que
nós só vamos saber muito mais tarde, quando o índio já está morto. É a cobiça
da terra, a cobiça do subsolo e a cobiça das riquezas naturais" (Noel Nutels,
CPI do Índio, 20/11/1968).
A universidade começa
a pesquisar o Relatório Figueiredo, um conjunto documental de 30 volumes com
mais de 7 mil páginas que ficou esquecido durante quarenta e cinco anos e que
trata dos crimes cometidos contra os índios. Na quinta-feira (27), uma
dissertação de mestrado foi defendida na Pós-Graduação em Memória Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) por Elena Guimarães.
Antes, na terça (25), foi o exame de qualificação de André Luís Sant'Anna no
Mestrado em Relações Étnicorraciais do Centro Federal de Educação Tecnológica
(CEFET-RJ).
As duas pesquisas
centram o foco no Relatório produzido entre novembro de 1967 e março de 1968
pela Comissão de Investigação do Ministério do Interior presidida por Jader de
Figueiredo Correia, mas com perspectivas diferentes. O trabalho ainda em
andamento do André, na área de psicologia social, busca identificar as práticas
disciplinares que atingem o corpo do índio para subjugá-lo. Enquanto o de
Elena, que trabalha no arquivo do Museu do Índio, trata o documento como lugar
de memória e reconstitui sua trajetória, como foi produzido, silenciado e
recuperado.
P de Perseguição
O ponto de partida do
Relatório Figueiredo foram os crimes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI)
registrados em 1963 pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), com ampla
repercussão fora do Brasil, incluindo o assassinato, em 1960, de 3.500 índios Cinta
Larga, envenenados com arsênico.A pressão internacional levou a Casa Civil a
solicitar providências ao ministro do Interior, Gen. Albuquerque Lima, que
criou, em julho de 1967, a Comissão de Investigação (CI), presidida por Jáder
de Figueiredo, Procurador do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca
(DNOCS).
Depois de percorrer
diferentes regiões do país e de ouvir centenas de funcionários e índios, a
Comissão registrou fatos estarrecedores: crimes sistemáticos contra a pessoa e
o patrimônio indígena, massacres e extermínios, esbulho e venda ilegal das
terras indígenas, desvios de verbas, fraudes, roubos, suborno, falsificação de
documentos. O próprio chefe do SPI, o major da Aeronáutica, Luiz Vinhas Neves,
responsável pela chacina dos Cinta-Larga, foi acusado de ter faturado quantia
exorbitante na época de mais de 1 bilhão de cruzeiros velhos.
O SPI, no lugar de
Proteção, passou a ser Serviço de Perseguição aos Índios. Castigos físicos,
torturas no "tronco" que provocaram aleijamento, mutilações e mortes,
cárcere privado, prisões independente da idade ou do sexo, maus tratos,
chicotadas, trabalho escravo, espancamento, assassinatos com requintes de
perversidade, viraram rotina, assim como índios pendurados pelos polegares,
outros mantidos em cisternas com excrementos humanos, estupros de índias usadas
em serviços domésticos.
Trecho do documento
selecionado por Elena Guimarães sobre o Massacre do Paralelo 11 traz o
depoimento do motorista do SPI, Ramis Bucair, que entregou à Comissão fita
magnética na qual estava gravada a confissão na presença de várias testemunhas
feita por um dos assassinos, Ataíde Pereira dos Santos:
"...Que um bando
de celerados, chefiados por Chico Luís, a soldo da firma de seringalista Arruda
Junqueira & Cia. metralhou um grupo de índios Cinta Larga; que após a
matança encontraram uma índia remanescente conduzindo seu filhinho de 6 anos,
que mataram a criancinha com um tiro na cabeça e penduraram a índia pelos pés,
com as pernas abertas e partiram-na a golpes de facão, abrindo-a a partir do
púbis em direção à cabeça,(...) que o crime continua impune e os assassinos
passeiam livremente pelas ruas de Cuiabá".
O escândalo do século
Dezenas de depoimentos
como esse foram registrados, incluindo o envio de parturientes para a roça um
dia após o parto, proibidas de levarem consigo o recém-nascido,
"tratamento muito mais brutal que o dispensado aos animais, cujas fêmeas
sempre conduzem as crias nos primeiros tempos", escreveu o procurador
Jáder Figueiredo, um pacato e honrado burocrata que não conseguiu conter sua
indignação:
"O índio, razão
de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados que lhe impuseram um
regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível
com a dignidade da pessoa humana. É espantoso que exista na estrutura
administrativa do País repartição que haja descido a tão baixos padrões de
decência. E que haja funcionários públicos, cuja bestialidade tenha atingido
tais requintes de perversidade".
A bestialidade
alcançou Jader, que sofreu ameaças de morte, foi transferido de Brasília para o
Ceará e morreu aos 53 anos num acidente de ônibus nunca investigado. Ele
documentou o que foi considerado "o escândalo do século". Mas o
noticiário nacional e internacional se concentrou nos aspectos sensacionalistas,
como se fosse uma aberração, quando na realidade os criminosos, identificados
pelos respectivos nomes, não eram marginais ou psicopatas, mas "gente
normal", que constituiu família e frequentava a igreja, com filhos na
escola e conta no banco, gente que rezava, comia, brincava, ria e chorava.
Os mandantes eram
grileiros, latifundiários, seringalistas, comerciantes em conluio com poderes
locais, juízes, governadores, desembargadores, políticos, deputados, prefeitos,
delegado de polícia, vereadores e até ministros, quase todos aparecem no
relatório com nome e sobrenome, numa rede destinada a expulsar os índios de
suas terras. Enfim, a nata da sociedade brasileira.
A recuperação das
terras
Depois do Ato
Institucional nº 5, em dezembro de 1968, com o recrudescimento da repressão e
da censura, o Relatório permaneceu "esquecido" e foi dado como
"perdido". Transferido da FUNAI para o Museu do Índio em 2008 com
outra notação, junto com outros papéis, ali estava arquivado com a
identificação técnica Processo 4.483/68, já que Relatório Figueiredo era a
denominação dada pela mídia. Assim, em 2013, Marcelo Zelic da Comissão Nacional
da Verdade conseguiu encontrá-lo rapidamente. Segundo a BBC, esse foi um dos
achados mais importantes da CNV. Mas o termo "descoberta" usado pelos
jornais é questionado na dissertação, que reconstitui os caminhos do documento,
ponderando que não estivesse organizado no arquivo, dificilmente seria
encontrado:
"Este é um evento
em que um documento é não mais um papel, um registro documental, mas um local
de memórias em disputa, onde este se consolida como monumento, como
documento-monumento".
A dissertação discute
a concepção de documento-monumento, chamando a atenção para o perigo de desviar
o historiador do seu dever principal: a crítica ao documento qualquer que seja
ele, considerando que se trata de um produto da sociedade que o fabricou no
contexto das relações de forças que detinham o poder.
O Fundo SPI, ao qual
pertence o Relatório Figueiredo, inserido no projeto de digitalização, foi
escolhido para integrar o Programa Memória do Mundo da UNESCO. Agora, ele está
integralmente digitalizado em alta resolução e pode ser acessado facilmente no
site do Museu do Índio. Segundo o líder Kadiweu, Francisco Mantchua, citado na
dissertação, "o Relatório Figueiredo pode ser um trunfo usado como prova
de que 140 mil hectares de nossas terras foram invadidos por fazendeiros. Com
certeza, esses documentos vão nos ajudar".
A Comissão Nacional da
Verdade, de posse do Relatório Figueiredo, reconheceu a responsabilidade do
Estado brasileiro na ocupação ilegal das terras indígenas e na violação dos
direitos humanos e recomendou: um pedido público de desculpas do Estado
brasileiro aos povos indígenas, a reparação aos mais de 8.000 índios atingidos
por atos de exceção, a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade,
a promoção de campanhas de informação à população, a reunião e sistematização
no Arquivo Nacional da documentação pertinente, a regularização e desintrusão
das terras indígenas.
Agora, além da
possibilidade de usá-lo para reparar injustiça histórica, seu estudo pela
universidade nos ajuda a compreender melhor o Brasil, já que as sociedades
indígenas constituem sempre um indicador extremamente sensível da natureza da
sociedade que com elas interage. O Brasil mostra sua cara, ou pelo menos revela
uma de suas faces, nas formas de relacionamento com os povos indígenas.
P.S. Elena Guimarães.
O Relatório Figueiredo no contexto da Política Indigenista no Brasil: entre
tempos, memórias e narrativas. Dissertação de Mestrado no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. Banca: José R. Bessa Freire
(orientador), João Paulo M. Castro (Unirio) e Joana D´Arc F. Ferraz (UFF).
André Luís de
Sant´Anna. Práticas disciplinares implicadas no Relatório Figueiredo:
Perspectivas psicológicas no controle étnico-social de índios durante a
ditadura militar no Brasil. Texto de qualificação. Banca: Alexandre de Carvalho
Castro (orientador), Álvaro de Oliveira Senra(Cefet-RJ) e José R.B.Freire
(Unirio).
*
Jornalista e historiador
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