Desabafo
de mãe sem esperança – e entre aspas
* Por
Mara Narciso
Depoimento
de Dona Josefa, em suas próprias palavras (ou quase)
“Foram treze gravidezes,
com oito partos de tempo em casa e cinco percas. Uma filha morreu assim que
nasceu, outra teve mal de sete dias e outro morreu de apendicite com 31 anos.
Passou da hora de operar, foi pra CTI, ligou aparelho, aturou quatro dias. A
vida sofrida da roça, sem recursos, guardava o pior segredo, o sofrimento sem
jeito, pior do que a morte: o sumiço do meu filho, há 15 anos. Foi alcoolismo.
Como bebia e sumia, a
gente só foi dar por fé quando já tinha três dias. A vida dele era desregrada,
de pouco trabalho e muitas faltas, mas já teve bons empregos. Quando os irmãos
foram atrás, nada encontraram. Deram parte na polícia, fizeram BO, buscaram em
hospitais, necrotério, e nada. A gente ficou em suspense muitos meses,
esperando alguma novidade do paradeiro dele. Botamos no jornal, falamos na
rádio, fizemos cartaz, mas o desaparecimento foi definitivo.
Mãe que filho morre
fica com um buraco sem fundo no coração pra toda a vida, mas mãe que tem filho
desaparecido fica pior, fica agoniada, imaginando o filho doente, desmemoriado,
sofrendo, preso, torturado. A cabeça não para. A mente vaga pelas estradas,
anda em busca do filho o tempo todo, sem distração. Imagina tantas coisas, numa
ânsia sem trégua.
A gritaria, o
berreiro, os choros do começo, as lágrimas soltas, que caiam, até o peito,
molhando a roupa, foram se calando, secando, ficando no silêncio. Berrar não
resolvia. Calar também não. A dor ficava mais profunda a cada dia. Era só
desespero.
Os anos passaram e
nenhuma pista do meu filho. Ninguém sabe, ninguém viu. E, depois passar anos,
com o pensamento nele, como o primeiro e derradeiro do dia, comecei a achar que
a morte seria melhor, menos sofrimento, mais conforto pra a gente e pra ele.
Pior do que a certeza é a dúvida de como a pessoa está. É uma aflição que não
passa. A cabeça torturando a gente.
No sonho eu via ele
chorando, humilhado, sofrendo, com fome e frio. E não havia nada que eu pudesse
fazer para parar o pensamento, aplacar o sofrimento. E diante de tudo isso, a
vida dura, as necessidades, os problemas, as doenças e tudo o mais seguia sua
rotina, sem respeitar minha dificuldade de lutar.
Quando aparecia no
noticiário alguma coisa de desaparecido que foi encontrado, a gente ficava com
esperança, inútil esperança de um dia ver ele de novo. Meus filhos buscaram na
internet de várias maneiras e nenhuma pista. Fomos aos poucos desistindo, ainda
que a ideia, o medo, e a saudade não largasse de mim.
Há dois meses meu
filho, o que está comigo, recebeu um telefonema de ex-colegas de uma firma
grande da cidade. Alguém da capital tinha visto o irmão desaparecido. Deu o
endereço e meu filho partiu logo em busca do irmão. Trouxe de volta em dois
dias. Tão perto e tão longe. Estava com 45 anos, desmemoriado devido ao
alcoolismo e outras coisas e morando na rua. Tinha sido atropelado, caxingava,
e teve os documentos roubados. Ficava ao relento na chuva e no frio, estava
irreconhecível, imundo, desdentado, barbado, um velho.
Quando eu vi meu
filho, foi como se eu visse outra pessoa. Estava limpo, já barbeado. O irmão
fez tudo. Fiquei olhando sem acreditar, e só então dei um abraço. A cara era
estranha, senti o coração bater forte e muita confusão dentro de mim. Mas era
ele, e isso tapava a ferida deixada aqui dentro do peito.
Está com a gente na
roça há dois meses. Não está bebendo, mas sua memória falha. Há conhecidos que
ele não reconhece. Foi ao psiquiatra para que, com remédios, consiga largar o
mal. Não fala o motivo de ter sumido, e nem o que fez nesse tempo. Sabemos que
coisas graves aconteceram, pois a sua aparência mostra isso. Ainda que nós
encontramos ele aos pedaços, o pior já passou. Acredito que recupero ele”.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Forte isso, heim. Seja Dona Josefa real ou uma invenção sua, a mensagem é seca, árida, contundente. Abraços, Mara
ResponderExcluirDona Josefa (nome fictício) é real. Mencionou o fato do reencontro. Os andamentos foram criados por mim. Obrigada Marcelo, pelo comentário tão preciso e animador.
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