quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Desabafo de mãe sem esperança – e entre aspas


* Por Mara Narciso

Depoimento de Dona Josefa, em suas próprias palavras (ou quase)

Foram treze gravidezes, com oito partos de tempo em casa e cinco percas. Uma filha morreu assim que nasceu, outra teve mal de sete dias e outro morreu de apendicite com 31 anos. Passou da hora de operar, foi pra CTI, ligou aparelho, aturou quatro dias. A vida sofrida da roça, sem recursos, guardava o pior segredo, o sofrimento sem jeito, pior do que a morte: o sumiço do meu filho, há 15 anos. Foi alcoolismo.

Como bebia e sumia, a gente só foi dar por fé quando já tinha três dias. A vida dele era desregrada, de pouco trabalho e muitas faltas, mas já teve bons empregos. Quando os irmãos foram atrás, nada encontraram. Deram parte na polícia, fizeram BO, buscaram em hospitais, necrotério, e nada. A gente ficou em suspense muitos meses, esperando alguma novidade do paradeiro dele. Botamos no jornal, falamos na rádio, fizemos cartaz, mas o desaparecimento foi definitivo.

Mãe que filho morre fica com um buraco sem fundo no coração pra toda a vida, mas mãe que tem filho desaparecido fica pior, fica agoniada, imaginando o filho doente, desmemoriado, sofrendo, preso, torturado. A cabeça não para. A mente vaga pelas estradas, anda em busca do filho o tempo todo, sem distração. Imagina tantas coisas, numa ânsia sem trégua.    

A gritaria, o berreiro, os choros do começo, as lágrimas soltas, que caiam, até o peito, molhando a roupa, foram se calando, secando, ficando no silêncio. Berrar não resolvia. Calar também não. A dor ficava mais profunda a cada dia. Era só desespero.

Os anos passaram e nenhuma pista do meu filho. Ninguém sabe, ninguém viu. E, depois passar anos, com o pensamento nele, como o primeiro e derradeiro do dia, comecei a achar que a morte seria melhor, menos sofrimento, mais conforto pra a gente e pra ele. Pior do que a certeza é a dúvida de como a pessoa está. É uma aflição que não passa. A cabeça torturando a gente.

No sonho eu via ele chorando, humilhado, sofrendo, com fome e frio. E não havia nada que eu pudesse fazer para parar o pensamento, aplacar o sofrimento. E diante de tudo isso, a vida dura, as necessidades, os problemas, as doenças e tudo o mais seguia sua rotina, sem respeitar minha dificuldade de lutar.

Quando aparecia no noticiário alguma coisa de desaparecido que foi encontrado, a gente ficava com esperança, inútil esperança de um dia ver ele de novo. Meus filhos buscaram na internet de várias maneiras e nenhuma pista. Fomos aos poucos desistindo, ainda que a ideia, o medo, e a saudade não largasse de mim.

Há dois meses meu filho, o que está comigo, recebeu um telefonema de ex-colegas de uma firma grande da cidade. Alguém da capital tinha visto o irmão desaparecido. Deu o endereço e meu filho partiu logo em busca do irmão. Trouxe de volta em dois dias. Tão perto e tão longe. Estava com 45 anos, desmemoriado devido ao alcoolismo e outras coisas e morando na rua. Tinha sido atropelado, caxingava, e teve os documentos roubados. Ficava ao relento na chuva e no frio, estava irreconhecível, imundo, desdentado, barbado, um velho.

Quando eu vi meu filho, foi como se eu visse outra pessoa. Estava limpo, já barbeado. O irmão fez tudo. Fiquei olhando sem acreditar, e só então dei um abraço. A cara era estranha, senti o coração bater forte e muita confusão dentro de mim. Mas era ele, e isso tapava a ferida deixada aqui dentro do peito.

Está com a gente na roça há dois meses. Não está bebendo, mas sua memória falha. Há conhecidos que ele não reconhece. Foi ao psiquiatra para que, com remédios, consiga largar o mal. Não fala o motivo de ter sumido, e nem o que fez nesse tempo. Sabemos que coisas graves aconteceram, pois a sua aparência mostra isso. Ainda que nós encontramos ele aos pedaços, o pior já passou. Acredito que recupero ele”.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



2 comentários:

  1. Forte isso, heim. Seja Dona Josefa real ou uma invenção sua, a mensagem é seca, árida, contundente. Abraços, Mara

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    1. Dona Josefa (nome fictício) é real. Mencionou o fato do reencontro. Os andamentos foram criados por mim. Obrigada Marcelo, pelo comentário tão preciso e animador.

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