Renovação diária
* Por Pedro J. Bondaczuk
A vida é bela, e fascinante, e misteriosa, por se
tratar de um permanente processo de renovação, embora paradoxalmente envelheçamos
a cada dia que passa. É como um rio, cujas águas são sempre diferentes. Jorge Luís
Borges, em uma das tantas entrevistas que deu no final da vida, observou:
"Quando São Paulo disse 'morro a cada dia', não era esta uma expressão
patética. A verdade é que morremos a cada dia e nascemos a cada dia. Estamos
permanentemente nascendo e morrendo. Por isso, o problema do tempo nos afeta
mais do que os outros problemas metafísicos. Porque os outros são abstratos. O
do tempo é o nosso problema. Quem sou eu? Quem é cada um de nós? Quem somos?
Talvez saibamos algum dia. Talvez, não. Nesse meio tempo, entretanto, como
diria Santo Agostinho, minha alma arde, porque quero saber".
Minha imagem refletida no espelho intriga-me. Todos
somos um pouco como o mitológico Narciso. Apaixonamo-nos por nós, sem que
estejamos dispostos a admitir. Durante um bom tempo, meu rosto parece-me o
mesmo, sem nenhuma mudança. Lá um belo dia, sem que possa explicar de maneira
lógica porque, detecto alterações, e profundas, na fisionomia. Uma ruga a mais
riscando o rosto, um novo vinco na testa, um cabelo branco antes não percebido...
São detalhes, para os outros irrelevantes, mas importantíssimos para mim. Mesmo
quando nada disso é perceptível, uma certeza íntima, súbita, sem aviso, de que
mudei, de que sofri um desgaste físico, de que envelheci, se instala no
espírito. Às vezes isto incomoda. Outras, nem tanto.
Se as mudanças na fisionomia são aparentemente
lentas, as do espírito – dos que têm o hábito de conversar consigo próprios,
através da meditação, e reavaliar, constantemente, seus passos – são
fulminantes. Aparecem de um dia para outro, senão de uma hora para outra. Não
são, obviamente, reveladas pelo espelho. As revelações, neste caso, são mais
sutis. O verdadeiro intelectual faz uma "checagem" constante dos
conceitos básicos que tem. E, se preciso, revisa-os, sem o maior escrúpulo, sob
pena de se tornar dogmático.
Pela manhã, muitas vezes, saímos de casa com uma
determinada idéia sobre alguém ou algo que nos cerca, ou com uma certa
resolução que pretendemos cumprir. À noite, quando voltamos, elas já estão
mudadas, para melhor ou pior. Por isso, os comunicadores têm que ter muito
cuidado com aquilo que passam para o papel ou que documentam de outra maneira
qualquer. É facílimo resvalar-se para a contradição. É comum emitir-se uma
determinada opinião hoje e amanhã, ou poucos dias depois, esta se encontrar
alterada por fatos supervenientes, ou por dados que antes desconhecíamos.
Os acontecimentos, como a vida, são dinâmicos e
aleatórios. Por isso não passa de imensa bobagem a tentativa de previsão do
futuro, do que não aconteceu e pode sequer jamais ocorrer. Não confundir com
extrapolações lógicas, que ainda assim têm margem de acerto baixa. Determinadas
ações produzem conseqüentes reações, mantidos os fatores normais. Isto não
significa adivinhar. Thomas Carlyle escreveu que "a história universal é
um livro que somos obrigados a ler e a escrever incessantemente e no qual nós
também somos escritos". Ninguém é mero espectador desse drama que se
desenrola no palco deste pequeno planeta azul. Todos somos, de uma forma ou de
outra, personagens desse enredo, cujo fim – se é que terá um – é incógnito e
absolutamente imprevisível.
Claro que pouquíssimos desempenham papéis
principais. Estes estão reservados, aparentemente por acaso, a um grupo ínfimo
de pessoas. A vastíssima maioria é composta por meros figurantes, cujos atos só
contam coletivamente, somados, integrados nessa força descomunal, mas caótica e
sem direção, chamada de "massa". Os tiranos aprendem a manobrá-la com
perícia, ou pelo medo (o que é mais freqüente) ou pela persuasão. Com essa
manobra, escrevem as páginas mais canalhas e sangrentas da crônica humana. Mas,
embora os efeitos de suas ações perdurem, para a felicidade geral, eles também
passam. E outros verdugos surgem.
Referindo-se ao papel dos intelectuais, os únicos
que têm condições de servir de antídotos contra o veneno das tiranias, Oswald
de Andrade escreveu: "É preciso (...) que saibamos ocupar nosso lugar na
história contemporânea. Num mundo que se dividiu num combate só, não há lugar
para neutros e anfíbios". Como se vê, as sociedades e civilizações, tal
qual as pessoas que as compõem, sustentam o dinamismo da vida. A cada dia que
passa morrem. A cada novo dia que surge nascem outra vez, sempre com uma nova
versão, se modificando, melhorando ou piorando ao sabor do acaso e tornando
imprevisível o arremate, o capítulo final da crônica das grandezas e misérias
humanas.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do
Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em
equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por
uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de
“Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio
de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49
(edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de
1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página
54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Com a rapidez dos acontecimentos e das informações é impossível sermos iguais por minutos que sejam.
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