domingo, 7 de dezembro de 2014

Renovação diária


* Por Pedro J. Bondaczuk


A vida é bela, e fascinante, e misteriosa, por se tratar de um permanente processo de renovação, embora paradoxalmente envelheçamos a cada dia que passa. É como um rio, cujas águas são sempre diferentes. Jorge Luís Borges, em uma das tantas entrevistas que deu no final da vida, observou: "Quando São Paulo disse 'morro a cada dia', não era esta uma expressão patética. A verdade é que morremos a cada dia e nascemos a cada dia. Estamos permanentemente nascendo e morrendo. Por isso, o problema do tempo nos afeta mais do que os outros problemas metafísicos. Porque os outros são abstratos. O do tempo é o nosso problema. Quem sou eu? Quem é cada um de nós? Quem somos? Talvez saibamos algum dia. Talvez, não. Nesse meio tempo, entretanto, como diria Santo Agostinho, minha alma arde, porque quero saber".

Minha imagem refletida no espelho intriga-me. Todos somos um pouco como o mitológico Narciso. Apaixonamo-nos por nós, sem que estejamos dispostos a admitir. Durante um bom tempo, meu rosto parece-me o mesmo, sem nenhuma mudança. Lá um belo dia, sem que possa explicar de maneira lógica porque, detecto alterações, e profundas, na fisionomia. Uma ruga a mais riscando o rosto, um novo vinco na testa, um cabelo branco antes não percebido... São detalhes, para os outros irrelevantes, mas importantíssimos para mim. Mesmo quando nada disso é perceptível, uma certeza íntima, súbita, sem aviso, de que mudei, de que sofri um desgaste físico, de que envelheci, se instala no espírito. Às vezes isto incomoda. Outras, nem tanto.

Se as mudanças na fisionomia são aparentemente lentas, as do espírito – dos que têm o hábito de conversar consigo próprios, através da meditação, e reavaliar, constantemente, seus passos – são fulminantes. Aparecem de um dia para outro, senão de uma hora para outra. Não são, obviamente, reveladas pelo espelho. As revelações, neste caso, são mais sutis. O verdadeiro intelectual faz uma "checagem" constante dos conceitos básicos que tem. E, se preciso, revisa-os, sem o maior escrúpulo, sob pena de se tornar dogmático.

Pela manhã, muitas vezes, saímos de casa com uma determinada idéia sobre alguém ou algo que nos cerca, ou com uma certa resolução que pretendemos cumprir. À noite, quando voltamos, elas já estão mudadas, para melhor ou pior. Por isso, os comunicadores têm que ter muito cuidado com aquilo que passam para o papel ou que documentam de outra maneira qualquer. É facílimo resvalar-se para a contradição. É comum emitir-se uma determinada opinião hoje e amanhã, ou poucos dias depois, esta se encontrar alterada por fatos supervenientes, ou por dados que antes desconhecíamos.

Os acontecimentos, como a vida, são dinâmicos e aleatórios. Por isso não passa de imensa bobagem a tentativa de previsão do futuro, do que não aconteceu e pode sequer jamais ocorrer. Não confundir com extrapolações lógicas, que ainda assim têm margem de acerto baixa. Determinadas ações produzem conseqüentes reações, mantidos os fatores normais. Isto não significa adivinhar. Thomas Carlyle escreveu que "a história universal é um livro que somos obrigados a ler e a escrever incessantemente e no qual nós também somos escritos". Ninguém é mero espectador desse drama que se desenrola no palco deste pequeno planeta azul. Todos somos, de uma forma ou de outra, personagens desse enredo, cujo fim – se é que terá um – é incógnito e absolutamente imprevisível.

Claro que pouquíssimos desempenham papéis principais. Estes estão reservados, aparentemente por acaso, a um grupo ínfimo de pessoas. A vastíssima maioria é composta por meros figurantes, cujos atos só contam coletivamente, somados, integrados nessa força descomunal, mas caótica e sem direção, chamada de "massa". Os tiranos aprendem a manobrá-la com perícia, ou pelo medo (o que é mais freqüente) ou pela persuasão. Com essa manobra, escrevem as páginas mais canalhas e sangrentas da crônica humana. Mas, embora os efeitos de suas ações perdurem, para a felicidade geral, eles também passam. E outros verdugos surgem.

Referindo-se ao papel dos intelectuais, os únicos que têm condições de servir de antídotos contra o veneno das tiranias, Oswald de Andrade escreveu: "É preciso (...) que saibamos ocupar nosso lugar na história contemporânea. Num mundo que se dividiu num combate só, não há lugar para neutros e anfíbios". Como se vê, as sociedades e civilizações, tal qual as pessoas que as compõem, sustentam o dinamismo da vida. A cada dia que passa morrem. A cada novo dia que surge nascem outra vez, sempre com uma nova versão, se modificando, melhorando ou piorando ao sabor do acaso e tornando imprevisível o arremate, o capítulo final da crônica das grandezas e misérias humanas.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 


                                                    

Um comentário:

  1. Com a rapidez dos acontecimentos e das informações é impossível sermos iguais por minutos que sejam.

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