Infância no Trairi
* Por Pablo Uchoa
No cenário modorrento da minha
memória, me lembro do Trairi. O sol quente na estrada de piçarra que levava às
Fleixeiras, a poeira vermelha levantando a cada carro que passava e ia
empestando a boca da meninada com aquela nuvem quente e arenosa, irrespirável.
Até que dali a pouco aparecia a praia, quando a estrada fazia um T e conduzia,
à esquerda, pro Mundaú, à direita, sei lá pra onde, nos meus tempos de menino
eu nunca me preocupei em saber pra onde levava a estrada à direita, só sabia da
lagoa do Mundaú e das dunas que a gente atravessava em pleno sol a pino, o pé
escaldando na areia quase branca, tão quente o caminho que a gente buscava um
verdinho qualquer de grama pra aliviar a temperatura.
Do tempo quente da minha
infância, ainda me assalta o Trairi. A volta da praia com o corpo ainda
salgado, dava a impressão de horas até a próxima bica, na casa antiga de pé
direito estelar que exibia, de cima a baixo (essa era a minha impressão)
fantasmas em preto e branco da tradicional família trairiense. A macarronada
com frango e suco de caju ou graviola, seguida de tapioca de coco com bastante
manteiga e café preto e doce de interior. E, de sobremesa, dindin de castanha,
toddy ou coco.
O corredor puído dava pra porta
da entrada sempre aberta, o compadrio ia entrando para um café e um tiquim de
conversa fiada e a criançada ia saindo pra jogar amarelinha, bandeira,
remanim-remanim ou homem-pega-mulher na praça de frente, o busto de vovô
acompanhando a inocência remexida com lascívia que exalava da espontaneidade
das crianças, ele imobilizado na sua expressão de fundador da cidade, a gente
com pensamentos de meninos citadinos espiando por baixo das saias das
matutinhas.
Era uma época de inocência...
E eu com medo de passar na frente
da igreja à meia-noite, ou pegar o caminho fúnebre do cemitério depois de caído
o sol...
Nenhuma impressão supera a
memória do jardim atrás da casa do Trairi, com seu cheiro de siriguela, goiaba,
ata e genipapo. Até hoje me arrepio quando de súbito percebo no ar a fragrância
de alguma pitomba que um sertanejo rompeu com seus dentes a quilômetros de
distância. De lá pra cá, aprendi a gostar e reconhecer o cheiro da mulher que
amo. O resto, minha paleta olfativa, é só aquele buquê de frutas tropicais,
tutti-frutti misturado com chiclete babalú, pirocóptero e fogos de artifício –
porque a vida no Trairi existia apenas em época de festa, principalmente a
Semana Santa, quando a turma ia roubar o Judas alheio e caçar nas lagoas e no
matagal da região, a gente suando de excitação no meio do carrapicho com medo
de cachorro e de olho na lua cheia, ouvido atento ao uivo do lobisomem.
No Trairi tinha lobisomem... e
mula sem cabeça.... e alma penada... e marmota, o pesadelo de todo sertanejo,
de todo cavaleiro, quem a tinha visto no meio da escuridão, em pleno caminho
deserto, nunca mais voltava a bater bem da cabeça. O Trairi era um transe, um
êxtase, um gozo sadomasoquista. Debaixo da igreja, o povo dizia que existia uma
traíra gigante, a mesma que batizara a cidade, monstrengo assombroso que
crescia quando a gente dizia “Traíra, Trairí, cresce!” – e a gente gostava
mesmo era de repetir o clamor da traíra gigante, até que ela atingisse
quilômetros e, incomodada e tomada pela ira, se levantasse e destruísse a cidade
que lhe rendia homenagem, trazendo-a ao chão vermelho de piçarra e nele
desaparecendo sem deixar sinal de perturbação, apenas a visão infernal da
modorra esfumaçada, cortada pelo taciturno, preguiçoso, esquálido rio Trairi.
Delgado e inofensivo como um sertanejo faminto.
Minha infância foi no Trairi e o
Trairi, se mudou, foi só no posto da Telebrás, que desapareceu e levou junto os
cabinhos pretos e vermelhos que a Maria conectava aqui e ali para gerar, dali a
alguns minutos, uma ligação pra Fortaleza.
E no Trairi nem tinha música, a
música foi invenção de minha adolescência, Caetano cantando “o céu de um azul
celeste celestial” e Raphael Rabello dedilhando “Modinha” e “Luiza” no meu
quarto hermético e apenumbrado de garoto-problema. O Trairi, não. O Trairi era
sal e suor e no máximo a melodia matuta da Lurdinha contado o de-um-até-dez
antes de sair atrás dos meninos. Ela correndo para me pegar e eu fugindo mas
doido pelo toque da mão da Lurdinha, a palma suja agarrava meu braço e eu
imaginava o rosto da Graziela, que tinha ficado em Fortaleza, de todo modo a
Graziela estava sempre comigo, escondida nos recantos da minha carteira
emborrachada, na forma de um papelzinho de bala Ice Kiss.
Graziela, Ricci e Marisa, meus
três amores de infância. Nem imagino onde tenha ido parar Ricci e muito menos
Marisa, a Graziela eu reencontrei nos meus treze anos e o resto é uma lembrança
congelada no tempo, imutável e impalpável, apática como o papel da balinha Ice
Kiss. Amor platônico mas real, tão sólido que comestível.
Afora isso, minha meninice não
fora tempo de amores, muito menos no Trairi, eu que de verdade ficava era
ruborizado com a sabedoria das meninas que só faltavam fagocitar aquele menino
loirinho e sardento, sobrancelhas tão brancas que pareciam nem ser, magrinho em
camisas listradas e calções invariavelmente rasgados, esse era eu medroso das
brincadeiras de abacaxi-pera-maçã que as matutas mais espertinhas gostavam de
propor. À distância eu assistia enquanto alguém mais assanhadinho pedia jambo
ou romã ou o diabo que se pedisse, eu pra mim me contentava com os saltos de
minha própria imaginação no escuro tátil do gato-mia... Eu já gostava da
sutileza, e o abacaxi-pera-maçã era o perceptível, o aparente, o visível, o à
mostra; o gato-mia era o silencio, a respiração, o tenso...
De mãos suadas e imundas e
coração a sair pela boca passei minha meninice, transeunte e aprisionada no
Trairi. Até o dia em que voltei à paisagem modorrenta da igreja e da pracinha,
e lavei as mãos antes do almoço.
Desde então, como um louco, tento
reconstituir o DNA de cada uma daquelas partículas de sujeira e passado que
escorriam pelo ralo depois de rodopiar pela louça branca da pia sanitária. E
refazer o caminho da minha meninice, das coisas simples da vida, de meu templo
e minha urna funerária, minha Pasárgada.
(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se
a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de
Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez”
(Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.
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