Diversidade em tempo de seca
* Por
Rachel de Queiroz
Quando Chico Bento,
depois daquela noite passada ali, no abandono da estrada, chamou a mulher e,
ajudando a levantar um dos meninos, foi andando em procura do povoado, em vão
buscou, pelas voltas do caminho, sentando nalguma pedra, o vulto de Pedro.
Na estrada limpa e seca
só se via um homem com uma trouxinha no cacete, e mais à frente, dentro de uma
nuvem de poeira um cavaleiro galopando.
- Que besteira!
Naturalmente ele já está no Acarape...
Mas chegaram ao
Acarape, e debalde perguntaram pelo menino a todo o mundo. Não... Ninguém tinha
visto... Sabia lá!... A toda hora estava passando retirante...
Numa bodega, onde o
vaqueiro novamente fez indagações alguém lembrou:
- Homem, por que você
não vai falar ao delegado? Ele é que pode dar jeito. Mora ali, naquela casa de
alpendre.
No modo que agora era o
seu, curvado, quase trôpego, Chico Bento endireitou para a casa apontada, que
ficava meio apartada das outras, tendo de um lado um alpendre onde se viam algumas
cangalhas de palha roída.
E bateu à porta,
enquanto Cordulina se sentava no chão, na beirada do alpendre.
Lá de dentro, uma voz
de mulher disse baixinho:
- Abre não, menina, é
retirante... É melhor fingir que não ouve...
Chico Bento escutou; e
sua voz lenta explicou, dolorida:
- Não vim pedir esmola,
dona; eu careço é de ver o delegado daqui...
Um homem de cachimbo no
queixo mostrou a cara na meia porta:
- Está falando com ele.
O que é?
Chico Bento ficou um
instante encarnando o homem, reconhecendo-o.
Mas o delegado,
impaciente, repetiu a pergunta:
- O que é que você
queria?
- Eu vim falar ao
senhor mode um filho meu, que desde ontem tomou sumiço. Nós ficamos na estrada,
eu assim, variando muito fraco... e ele veio vindo até aqui. Quando de manhã
cacei o menino, não teve quem desse notícia.
É como é ele?
- Assim comprido,
magrinho, a cara chupada... está dentro dos doze anos...
O delegado tirou o
cachimbo da boca e, calcando com o dedo o tabaco, abanou a cabeça:
- Não tenho jeito que
dar não, meu amigo... O menino, naturalmente, foi-se embora com alguém... Um
rapazinho, assim sozinho, muita gente quer.
Cordulina ouvia
confusamente o que diziam, e chorava, baixinho. Desanimado, Chico Bento
sentou-se na mesma beirada de tijolo, junto à mulher.
Ainda na porta, o
delegado entrou a fitar o caboclo com insistência, reconhecendo também aquela
cara, o jeito de ombros, a fala.
E perguntou:
- Donde você é?
A voz cansada soou
fracamente:
- Eu sou filho natural
de Iguatu, mas faz muito tempo que morava pras bandas do Quixadá.
O homem procurou arejar
a memória:
- Nas terras de Dona
Maroca?
- Inhor sim, nas
Aroeiras...
O delegado abriu a
porta e saiu para o alpendre:
- Bem que eu estava
conhecendo! É o meu compadre Chico Bento!
Chico Bento pôs-se em
pé:
- Inhor sim... Eu
também, assim que olhei pra vosmecê, disse logo comigo: este só pode ser o
compadre Luís Bezerra... Mas pensei que não se lembrava mais de mim...
O delegado convidou:
- Entre, compadre! Essa
é a comadre? Adeus, comadre, entre também! Cadê meu afilhado? Será esse que
fugiu?
Cordulina entrava,
puxando por um dos meninos, e respondeu:
- Inhor não... O seu
afilhado era o Josias, morreu na viagem...
O homem chamou a
mulher:
- Eh! Doninha! venha
falar com uns conhecidos! Entre, compadre, ela está na cozinha. Vá entrando!
Depois, ficando só com
Chico Bento, atentou na miséria esquelética e esfarrapada do retirante:
- Então, compadre, que
foi isso? A velha largou você?
- Ela não quis tratar
do gado mode a seca, e mandou abrir as porteiras... E eu fiquei sem ter o que
fazer. A morrer de fome, antes andando...
O delegado quase deixou
cair o cachimbo, num assombro:
- Não diga isso,
compadre, não é possível! Deixar morrer aquele algodão todinho, sem mais pra
quê!
- Pois mandou soltar no
dia de São José! Eu ainda esperei obra duma semana...
O delegado se exaltou,
gesticulando com o cachimbo:
- Aquela velha é uma
desgraça! Tenho fé em Deus que o dinheiro que ela poupa ainda há de lhe servir
pra comer em cima duma cama... Você não se lembra por que foi que eu saí das
Aroeiras, compadre? Me convidou para abrir uma bodega, que me daria mundos e
fundos, garantia de um tudo. Gastei o que tinha e o que não tinha em
mercadoria, e o resultado foi aquele... Era obrigado a fornecer a ela pelo
custo, tinha de fazer isso, fazer aquilo, e ela não me dava interesse de
qualidade nenhuma. Um dia mandei tudo pro diabo, liquidei como pude o que
possuía, e me larguei pra cá. Inda hoje não me arrependi... Mas você ficou,
foi-se fiar nesse negócio de madrinha Maroca, teve o pago...
Chico Bento baixou a
cabeça, concordando; olhou em redor, a casa caiada, a mesa envernizada, uma
arca de couro, um relógio de parede:
- É, compadre, você
está bem...
Lá de dentro a voz de
Doninha chamou o marido:
- Luís, traz o compadre
aqui, pra botar qualquer coisa no estômago!
Quando viu Chico Bento
abancado, comendo, o delegado saiu da sala:
- Vou mandar dois
cabras atrás de seu menino. Não mando praça, porque só tem lá na Redenção. Aqui
no Acarape, só requisitando.
Do alpendre, mandou um
moleque com um recado, e os dois cabras chegaram:
- Vocês vão ver se
encontram um menino, filho de retirante, que atende por Pedro. Sumiu-se esta
noite. Vejam lá se dão um jeito de achar. O pai anda em tempo de correr doido e
é meu compadre!
Depois foi à cozinha,
consolou Cordulina:
- Sossegue comadre, já
mandei caçar seu filho. Se estiver por cima do chão, se acha...
Mas os cabras voltaram
ao meio-dia sem o menino.
Um deles não conseguira
apurar nada. O outro contou que o menino tinha sido visto na véspera de noite,
num rancho de comboieiros de cachaça.
- Naturalmente tinha
ido embora mais eles, de madrugada...
Cordulina já quase nem
chorava.
Talvez fosse até para a
felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o
pai?
Nesse mesmo dia, à
tarde, tomaram o trem para a cidade.
Alma boa, o compadre
Luís Bezerra! Tinha arranjado passagens, dera uma roupa sua ao Chico Bento,
tinha feito a Doninha arranjar um vestido velho para Cordulina...
E agora, sentados,
juntos, apertados, os três meninos que restavam muito agarrados a eles, abrindo
os olhos de espanto à confusão de gente que se aglomerava no carro sujo,
cuspido, fumacento - com as roupas brancas lavadas contrastando esquisitamente
com a espessa sujeira dos corpos - Cordulina e o marido sentiram o trem apitar
e sair correndo, e viram sumir a casa branca com o alpendre do lado, onde o
compadre Luís Bezerra, em pé, de mãos nos bolsos, fumava o seu cachimbo.
No mesmo atordoamento
chegaram à Estação do Matadouro.
E sem saber como,
acharam-se empolgados pela onda que descia, e se viram levados através da praça
de areia, e andaram por um calçamento pedregoso, e foram jogados a um curral de
arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo fogo.
Só aos poucos se
repuseram e se foram orientando.
Cordulina acomodou-se
como pôde, ao lado do cajueiro onde tinham parado.
Da banda de lá, um
velho deitado no chão roncava, e uma mulher de saia e camisa remexia as brasas
debaixo de uma panela de barro.
Cordulina foi à sua
trouxa, e tirou de dentro um resto de farinha e um quarto de rapadura, última
lembrança da comadre Doninha.
Deitado na areia,
calçado com um pano, já o Duquinha dormia. Os outros dois metiam a mão na
farinha engolindo punhados.
Chico Bento olhava a
multidão que formigava ao seu redor.
Na escuridão da noite
que se fechava, só se viam vultos confusos ou alguma cara vermelha e reluzente,
junto a um fogo.
Tudo aquilo palpitava
de vida, e falava, e zunia em gritos agudos de menino, e estralejava em
gargalhadas e em gemidos, e até em cantigas.
E estendendo a vista
até muito longe, até aos limites do Campo de Concentração, onde os fogos luziam
mais espalhados, o vaqueiro sacudiu na boca uma mancheia de farinha que lhe
oferecia a mulher e, procurando quebrar entre os dedos um canto de rapadura,
murmurou de certo modo consolado:
- Posso muito bem
morrer aqui; mas pelo menos não morro sozinho...
(O quinze, 1930.)
*
Uma das maiores escritoras brasileiras, membro da Academia Brasileira de Letras
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