segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Quase tragédia

* Por Daniel Santos


Um embrulho, um pacote; um corpo, talvez. Despencou do alto do  prédio sem uivo nem tardio gesto de arrependimento.

Na verdade, deixou-se cair, sem espernear nem procurar no espaço uma alça, um cabo onde agarrar. Sim, provavelmente, um corpo, mas já sem desejo e, portanto, sem identidade – quem reclamaria alguém assim?

Fosse dia, seria uma tragédia, gente chorando e acendendo velas em torno ao cadáver. Mas a madrugada ia já longe, quando todos dormiam, exceto os mendigos cuja fome fazia intuir o alimento.

Para eles, uma festa. Arrastaram o pacote ao fundo do beco, onde o caldeirão fumegava à espera das primeiras postas. De cócoras como hominídeos, seus olhinhos brilhantes aguardavam em silêncio a saciedade.

Intrigado pelo baque na calçada, o porteiro do prédio saiu para se inteirar do ocorrido, quando o entregador de jornais atirou-lhe a edição do dia. Com uma vista d’olhos nas manchetes, sossegou: ia tudo bem pelo mundo. E voltou cheio de responsabilidades para a portaria.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


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