segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Nem a gregos e nem a troianos

O livro “1984”, de George Orwell, volta e meia volta à baila, tantos anos após ser escrito e publicado. A imensa maioria das críticas, feitas em ensaios, biografias e outros tipos de análise (quer literária, quer política ou ideológica), é negativa. Consiste tanto de ataques ao estilo do autor quanto, e principalmente, ao seu próprio conteúdo. Ou seja, a mensagem que pretendeu transmitir. Nessa onda, de quase linchamento, a própria figura do escritor não é poupada. Há quem o acuse, por exemplo, de jamais ter sido socialista, mas mero “oportunista ideológico”. Outros tantos são mais complacentes com ele. Entendem, sobretudo, que Orwell acreditava em um “socialismo utópico”, democrático, que não existe e nunca existiu em nenhum lugar, qualquer coisa parecida com a “glasnost” e a “perestroika” que Mikhail Gorbachev tentou implantar nos anos 80 e início dos 90 do século XX, no afã de salvar (em vão) a União Soviética da desagregação.

Nessa querela ideológica, que volta e meia é renovada, sobretudo em jornais e revistas sectários, o que menos se analisa, todavia, é o conteúdo de “1984”. A ditadura, de que o autor trata, ressalte-se, tanto pode ser de esquerda, quanto de direita. Orwell não dá a menor pista a propósito. Não identifica (e sequer sugere) em qual dos dois extremos estava pensando ao compor o enredo. É esta ambigüidade que o torna alvo constante tanto de uma vertente, quanto da outra. Ou seja, obtém uma quase unanimidade de condenações, sob os mais variados argumentos, quer de intelectuais de esquerda, quer dos de direita, com um extremo ideológico acusando o outro de ser o verdadeiro foco do escritor, ou seja, o “implantador” da ditadura absolutíssima tratada no livro.

Orwell escreveu essa obra em 1948, embora fosse publicada um ano depois, em 1949. Deu-lhe um título (propositalmente?) ambíguo, sugerindo o tempo em que a “Oceania” que criou surgiria no panorama mundial, sob o domínio absolutíssimo do “Big Brother” que, em sua determinação de controlar tudo, rigorosamente tudo na vida de seus cidadãos, controlaria, inclusive, e principalmente, seus pensamentos. Pensou em uma época  que não fosse nem tão distante daquela em que vivia e nem muito próxima. O que fez? Simplesmente inverteu os dois últimos algarismos do ano em que escreveu o livro: 1948 virou “1984”.

Das inúmeras acusações de que George Orwell foi (e volta e meia continua sendo) alvo, a mais contundente foi feita pela jornalista e historiadora britânica Frances Stonor Saunders. Em seu livro “Quem pagou a conta – A CIA na Guerra Fria da Cultura” (lançado no Brasil em 2008 pela Editora Record, com 556 páginas e tradução de Vera Ribeiro), ela o acusa de ter sido delator, ou seja, dedo-duro. Afirma que o autor de “1984” entregou, ao Departamento de Pesquisa de Informações (IRD), o braço secreto do Ministério de Relações Exteriores da Inglaterra, em 1949, uma lista que denunciava “35 pessoas como simpatizantes, ou como suspeitas de serem testas-de-ferro ou ‘adeptas’ do comunismo”.

A dita relação conteria nomes de intelectuais dos mais ilustres, como Kingsley Martin, Michael Redgrave, John Steinbeck, Paul Robenson, Upton Sinclair, Richard Rees, J. B. Priestley, George Padmore, Stephen Spender e Tom Driberg (estes dois últimos lembrados por serem, supostamente, homossexuais), entre outros. Saunders admite que a lista foi feita como uma espécie de “brincadeira” de Orwell com os amigos. Fica claro, portanto, que ela de fato existiu e que foi feita pelo acusado. A dúvida que fica é se ele a entregou ou não ao IRD. Da minha parte, suspeito que sim.

O biógrafo do autor de “1984”, Bernard Crick, praticamente confirma o ato de “deduragem” ao justificar: “Orwell não diferiu dos cidadãos responsáveis de hoje que transmitem ao esquadrão antiterrorista informações a respeito de pessoas de suas relações que eles acreditam serem terroristas do IRA. Essa era uma época vista como perigosa, o fim dos anos quarenta”. Caso o acusado tenha, realmente, agido assim, considero a atitude sumamente condenável, até porque estaria expondo pessoas de suas relações que pensavam exatamente como ele. Dêem o nome que quiserem dar a esse ato – caso tenha sido mesmo praticado – mas, para mim, é traição explícita.

Nesse aspecto concordo com o jornalista, escritor e radialista inglês, Peregrine Worsthorne, que declarou: “Um ato desonroso não se torna honrado pelo simples fato de ter sido cometido por George Orwell”. E Saunders arrematou: “Ele demonstrou haver confundido o papel do intelectual com o do policial”. Diz o surrado clichê que “ninguém consegue agradar, simultaneamente, a gregos e troianos”  E não consegue mesmo. O maior erro de George Orwell, na concepção de “1984”, foi o de não identificar a ideologia de “Big Brother”. Caso o fizesse, certamente seria, sim, alvo de ataques, mas de apenas uma das ideologias extremistas. Todavia, não uniria as duas no sentido de tentarem destruir não apenas sua obra, mas, principalmente, sua reputação. Do jeito que agiu, não agradou “nem a gregos e nem a troianos”.

Boa leitura.


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