Quantas vidas você já viveu?
* Por
Mara Narciso
“Quem
vive mais do que uma vida, também deve morrer mais que uma morte.” Oscar Wilde
(1854-1900)
Isso nos é apresentado
a todo instante, desde a mudança de ano até a alternância de governos, ou ainda
ovos quebrados para se fazer omeletes. Não há renascer sem antes haver uma
perda, vista aqui como morte, antes de algo novo acontecer.
A começar pela careta
da criança ao comer sua primeira sopinha, ao degustar o sal depois de meses
sorvendo o doce leite materno. Adiante largar o peito, seguido do caminhar, do
cair, do machucar. Depois chega a consciência da passagem do tempo. “Adeus ano
velho, feliz ano novo, que tudo se realize no ano que vai nascer”, e os fogos
pipocando e a criança chorando alto, acima do som dos foguetes. “Mas o que
foi?” “Estou triste. O ano velho morreu!” Esta é a primeira e inesquecível
morte. Depois, mudar de ano letivo e de professora causa insegurança. É preciso
paciência para enfrentar os calundus dos pequenos, que vão se adaptando às
novas ordens.
Os choros dos adultos
podem ser difíceis de entender. Quando têm uma coisa, pretendem avançar para
alcançar outra, e sabem que para ter algo é preciso largar a anterior. Assim,
mudam de carro, de casa, de emprego, de amigos, de relacionamento. Nem sempre
para melhor. E para cada etapa, vem a adaptação, tão dolorosa que pode ser
fatal. Há mudanças de cidade que se mostram dramáticas, com sérios
desdobramentos. Pessoas que engordam vinte quilos em um ano. Outras melhoram de
vida, passam no sonhado concurso, estão ganhando bem, mas se não buscarem ajuda
psiquiátrica, entram em combustão, fracassam, morrem. Para quem não se prepara,
aposentar-se pode ser se acabar.
As mudanças de estado
civil, começando de solteiro para casado, pesam no comportamento. Casar é um
verbo tão pesado quanto morrer. É preciso dar uma grande festa, e a cada ano
novos itens são acrescentados. Se antes já era quase um circo, hoje tem o
picadeiro completo. É preciso mimar os convidados com presentes e bombons. O
baque do fato em si pode ser grande, não sendo incomum namorar dez anos e ficar
casado três meses. O que é uma nova morte, por ter de recuar, vender,
recomeçar. O divórcio é uma catástrofe.
Padres largam a batina,
profissionais mudam de ramo, médicos trocam de especialidade. É possível mudar
de sexo, religião ou time de futebol. O avançar da vida exige mudanças, e estas
passam por pequenas mortes e grandes prejuízos, e outro tanto de ganhos. Nesse
vai e vem anda solta a opinião alheia, que, pelo menos da boca pra fora não
afeta ninguém, mas que, na conversa com o travesseiro, impinge novos morreres.
Muitos querem mudar de
vida, viver a existência de alguém que nem existe. Boa parte dos desaparecidos
cujos rostos estão nas contas de luz e água, foi comprar cigarros e nunca mais
voltou. O que queria mesmo era uma nova vida e foi atrás dela, levando apenas a
vontade. Alguns foram vítimas de crimes, mas outros não querem ser achados e
trocaram de face e de nome.
Ex-presidiários, cuja
pena tem oficialmente o objetivo de resgate, fazendo a pessoa arrepender-se do
crime e não voltar a cometê-lo, podem querer e querem muito, que tudo seja
esquecido. As nossas prisões propiciam isso, ou mesmo nós somos capazes desse
esquecimento?
Pais nômades, que mudam
de estado ou país de tempos em tempos, levando seus filhos, podem fazer das memórias
deles, uma colcha de retalhos de lugares e pessoas, num caldo de culturas. Um
dia, algum dos filhos pode querer se fixar, passar uma borracha no que traz
misturado, e amar um canto só.
Pode-se querer esquecer
o passado, ou parte dele, excluindo momentos traumáticos. Há recursos de
hipnose para esse fim. Melhor seria desenvolver uma amnésia seletiva, que
possibilitasse escolher o que lembrar. O terrível, o que feriu de morte, seria
enterrado fundo, e coberto com concreto forte.
A vida pode ser vivida
com intensidade de paixão, em todo seu esplendor. Mas antes da mudança, o preço
é deixar ir o que já passou, envolvendo uma interessante dinâmica.
*Médica endocrinologista,
jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto
Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
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