segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Questão de autonomia

* Por Daniel Santos


Um pobre diabo veio me falar de urgências, pediu-me pressa e, de minuto em minuto, consultava o relógio, a ver se já eram horas, se os prazos finavam-se, se ainda havia tempo para eu seguir com os demais.

Argumentei que dispunha em minha própria casa de confortos que me satisfaziam o suficiente; daí, a inutilidade de tanto sobressalto e ansiedade, mas ele insistia na necessidade da incessante prontidão.

Mostrei-lhe o pão que me aguardava sobre a mesa do café, a água morna jorrando do chuveiro, o broto de violeta nascendo no vasinho, um novo livro à espera de leitura. O tal, no entanto, não se convencia.

Aborreceu-se, transfigurou-se de fúria, porque não lhe cedia meus nervos nem meus desejos. Vaguei pela casa como quem decide o próprio ritmo e, antes do desjejum, sentei na varanda para saudar a aurora.

Quando dei por mim, ele se fora. A porta bateu com estrépito e o pobre diabo afastava-se apressadíssimo para o mundo e seus comércios, enquanto eu contabilizava secreta vitória. Sem orgulho, mas pleno.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

 


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